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Pansophia

Pansophia

domingo, 26 de março de 2017

A supremacia do homem – Fílon de Alexandria.

 

por Osvaldo Duarte

 

 “(...) não há criatura terrestre mais semelhante a Deus que o homem”.

 

 

criaçao do homem

 

O Homem é a criatura mais querida por Deus, pois sob seu comando submeter-se-á toda criatura vivente sobre a face da terra.

De Opificio Mundi é uma obra eminentemente pitagórica-platônica com uma pitada de epicurismo, onde Fílon atribui a Moisés todo este conhecimento que alcançou, segundo ele, o ponto mais alto da filosofia. A bem da verdade trata-se de uma leitura do livro Gênesis sob a luz da Filosofia.

Mas o que nos interessa aqui, ao menos no momento, é a leitura da criação do homem que Fílon faz do primeiro livro da Bíblia.

Deus fez primeiro o céu, o mais perfeito dos incorruptíveis, e por último, o homem, o mais nobre dos corruptíveis nascidos da terra.

Na ordem natural, os peixes foram os primeiros a serem criados, depois destes as aves e os animais terrestres e, por fim, o homem. Os primeiros da criação são os mais vis, e os últimos, isto é, os homens, são os mais excelentes, sendo que entre estes extremos, estão os que são melhores que os primeiros e piores que os últimos.

Entre os entes, uns não participam nem da virtude e nem dos vícios, no caso, as plantas e os animais irracionais que, sendo desprovidos de alma, sua natureza é regida pela imaginação, outros, por sua vez, participam apenas da virtude como é o caso dos astros, pois estes são dotados apenas do intelecto. O homem possui natureza mista, que admite contrários, a saber, prudência e imprudência, temperança e incontinência, coragem e cobardia, justiça e injustiça, numa palavra, virtudes e vícios.

O homem foi gerado à imagem e semelhança de Deus, mas não se trata de semelhança das características do corpo humano, pois nem Deus tem a figura humana e muito menos o corpo tem a forma divina, esta similitude refere-se ao intelecto (noûs), o guia da alma.  Criado e enquanto ideia, o homem é incorruptível, incorpóreo não sendo nem masculino ou feminino por natureza.

Sendo a última das criações do mundo, como dissemos, ao que tudo indica, ainda segundo Fílon, é que Deus primeiramente criou o homem como ideia, e antes mesmo da sua existência aqui na terra, dada àquela similitude, isto é, a capacidade racional, o mais excelente dos dons, não lhe recusou outros dons, preparando o mundo com todas as coisas necessárias a sua sobrevivência de forma a viver bem, pela contemplação dos fenômenos celestes e da filosofia, pela qual o homem mortal torna-se imortalizado.

Ademais, sendo o último dos entes criados, como foi dito, ao aparecer de súbito no último instante diante dos animais, esses o respeitariam como chefe e senhor.  Animais de todas as espécies tornar-se-iam mais dóceis para com os homens. O homem foi criado para ser soberano por natureza, para ser rei de todas as criaturas terrestres, aquáticas e aéreas. Todos os mortais constituídos dos três elementos, isto é, terra, água e ar, lhe estão subordinados.

O homem sensível foi criado por Deus do pó da terra, tendo recebido em sua face o sopro da vida. Tendo o homem sido constituído de substância terrosa e sopro divino (pneuma), é composto de corpo e alma, sendo o corpo mortal por natureza e a alma imortal.

Por ser composto dos quatro elementos, o homem é tudo, terrestre, quando habita e caminha pela terra, aquático quando mergulha, nada e navega, e ainda aéreo, pois pode ser erguido e alçado sobre a terra e ainda, celeste, através da visão quando se aproxima do sol, da lua e cada um dos astros, móveis ou fixos.

Como é próprio do chefe nomear a cada uma das coisas que lhe são subordinadas, o primeiro homem, rei, atribuiu nomes a todas as criaturas viventes e quando Deus, desejoso de saber os nomes dos animais, os guiou para junto de Adão; assim, os entes receberam nomes próprios e adequados, deixando claras as peculiaridades de cada um. Tendo o primeiro homem mostrado a sua excelente capacidade de comandar, Deus o considerou apto a ocupar o segundo lugar como chefe dos demais viventes.

 

adão e eva

 

A primeira desventura desse primeiro homem foi a mulher. Ao ver com gozo uma figura irmã, Adão aproximou-se dela e a abraçou. A mulher, por sua vez, não vendo outro animal semelhante a ela, alegrou-se e saudou-o com pudor; assim surge Eros, o amor, como se reunindo duas partes de um só animal, inspirando a cada um o desejo de comunhão com o outro. Mas este desejo trouxe consigo o prazer, responsável pelas injustiças e transgressões e razão pela qual se troca a vida imortal e feliz por uma mortal e miserável. A mulher com seu juízo volúvel e instável, após comer o fruto deu-o de comer ao homem, e ambos passaram da sinceridade e ausência de maldade para a malícia, atraindo sobre si mesmos a cólera divina.

A relação entre macho e fêmea passou a ser de prazer e, graças a ele, foi possível a geração futura. Como paga, a mulher passou a sofrer as dores do parto e a perda da liberdade e o domínio do homem com quem vive, cujas ordens é obrigada a obedecer. O homem, por sua vez, recebeu trabalhos, fadigas e suor da labuta. O prazer não ousa direcionar seus encantamentos e engodos ao homem, mas à mulher, que, por meio dela, o atinge. Em nós o intelecto representa o homem, e a sensação representa a mulher.

Leituras:

FÍLON DE ALEXANDRIA, Da Criação do Mundo e Outros Escritos. Trad. L. M. Dutra. São Paulo: Filocalia, 2015.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Corpo e Alma – Uma visão Estóica.

por Osvaldo Duarte

 

 

ALMA2

 

Sobre o Corpo:

“(...) este nosso corpo é para o espírito uma carga e um tormento”.

A noção de corpo como prisão da alma, já a encontramos entre os Órficos que, de certa forma, o estoicismo também se apropria, como veremos nas obras de Sêneca, dentre outras obras, fragmentos do Pórtico.

“(...) o espírito, encerrado nesta morada obscura e triste, procura sempre que pode, o ar livre e repousa através da contemplação da natureza.”

O corpo é para a alma uma prisão, um pesado fardo e um tormento. Ainda que o corpo esteja sujeito aos infortúnios da vida, deve servir de barreira para que os golpes da fortuna não cheguem à alma. Não devemos praticar os vícios em atenção a este corpo frágil e, muito menos, não nos deixemos levar pelas paixões (pathemata) que são de quatro gêneros a saber, a dor, o medo, a concupiscência e o prazer.

“(...) é possível que, até certo ponto, a nossa própria providência consiga prolongar um pouco a duração deste miserável corpo, desde que consigamos dominar e reprimir as paixões que consomem a sua maior parte.”

Segundo ainda a escola do Pórtico, como a maior parte dos homens tem como males: a pobreza, o sofrimento e a morte e, os discípulos deveriam praticar o exercício de meditação (Praemeditatio Malorum), fazendo com que o corpo habituasse às intempéries, à fome e à sede, tornando assim a alma temperante. O exercício consistia em habituar o corpo às adversidades da vida representando de antemão tudo que o afligia como a pobreza, o sofrimento, a morte, enfim todos os males. O exercício tinha por objetivo ajudar na aceitação das contingências da vida, agindo de acordo com a reta razão, considerando o que depende e o que não depende do homem e, mais do que isso, um viver conforme a Natureza. A razão é o supremo juiz do bem e do mal, uma parcela do espírito divino inserida no corpo do homem.

“As coisas que estão em nossa mão, de sua natureza são livres e senhoras, sem impedimento, nem embaraço. E as que não estão em nossa mão de si são fracas servis, embaraçadas e sujeitas.”

Sobre a Alma:

“a alma deve estar desperta, confiante, acima das contingências.”

Embora possivelmente seja anterior, encontramos em Anaxímenes o conceito de Alma como sopro (pneuma). A Stoa, por sua vez, também seguiu nesta mesma esteira. Zenão de Chipre, na sua obra infelizmente perdida - “Da alma”, a define como sopro quente, que nos permite respirar e mover-nos. Para o estoicismo, a Alma do homem é fogo, porção do Sopro Ígneo Universal, partícula viva, uma centelha divina.

Segundo ainda a Stoa, a Alma possui oito partes: os cinco sentidos, a faculdade da palavra, a faculdade mental, que é o pensamento em si mesmo, e a faculdade geradora. Os estados da Alma virtuosa são, a saber, liberdade, tranquilidade, simplicidade, liberalidade, firmeza, equanimidade e tolerância.

Tudo no mundo consta de matéria e espírito divino. A divindade que é o agente que tudo regula, tem sob sua sujeição a matéria. Assim como o universo, o corpo é matéria e, como tal, inferior à Alma; que sirva o inferior ao superior. Devemos ser fortes diante do acaso e não nos dobrarmos diante das injúrias, das feridas e da miséria. Alma virtuosa é a que não sucumbe à dor, ao sofrimento ou a qualquer espécie de transtorno. A virtude proporciona à Alma a retidão e constâncias de propósitos.

Ainda que aprisionada ao corpo, a alma pode através da filosofia libertar-se e alçar voos ocasionalmente e refazer-se as forças no firmamento e na contemplação da natureza.

“A alma deseja libertar-se e regressar aos elementos que já fez parte.”

A principal atitude do filósofo estóico era a prosochè, a atenção a si mesmo, a vigilância sobre suas ações a cada instante. O homem enquanto consciente, desperto, pratica o bem e conhece o seu lugar nos kosmós e a sua relação com o Universo.

Para a alma, “pátria” são todos os espaços abarcados pelo universo, é toda esta esfera dentro da qual o ar separa e une ao mesmo tempo o divino e o humano, e na qual inúmeras forças divinas em perfeita ordenação, cumprem atentamente as respectivas funções. (...) Século nenhum permanece fechado aos espíritos superiores, tempo nenhum se mostra inacessível ao pensamento.”

Leituras:

DUMONT, Jean-Paul. Elementos de História da Filosofia Antiga. Trad. Georgete M. Rodrigues. Brasília, Ed. UnB, 2004

EPITÉTO, Manual de Epíteto. Trad. Frei Antonio de Souza. São Paulo: Edições Cultura, 1944

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do Sujeito. Trad. Márcio A. F. e Selma T.M. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

GOMPERZ, Theodor. História da Filosofia Antiga, Tomo I. Trad. Joé I. C. M. Neto. São Paulo, Ícone Editora, 2011.

HADOT, P. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Trad. Flavio F. L e Loraine O. São Paulo: É realizações, 2014.

PEREIRA, M. H. Rocha, Estudos de História da Cultura Clássica, vol. I. Lisboa: Fund. C. Gulbenkian, 1980.

SÊNECA, L. A., Cartas a Lucílio. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.