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Pansophia

Pansophia

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Homem e humano; demasiado humano?

por Osvaldo Duarte

 

 

Os conceitos de homem e humano estão mesclados de tal forma que já não conseguimos mais distingui-los. Essa amálgama não está de toda errada, mas acreditamos que é sempre preciso voltar àqueles conceitos originários para que se possa repensar o que ainda resta de humano no homem que se diz humano. Há certa obviedade ao dizermos que somos seres humanos ou homens, isso não requer, de fato, uma grande reflexão, pois os compreendemos perfeitamente.  No entanto, ao pedirmos de chofre uma explicação de tais conceitos, nos parece que não há clareza nas respostas, afora a argumentação religiosa, o que está fora do nosso propósito.

 

 

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No conceito originário de homem não continha essa subjetividade do eu tal qual a conhecemos hoje. O “eu” para os gregos, estava imerso na totalidade do mundo circundante, na physis (natureza), na pólis.  Para os antigos gregos, homem significava: ser vivo que possui linguagem. A essência do homem é possuir palavras, poder dizer algo e poder ouvir o que o outro tem a dizer. A palavra permeia as relações dos homens de tal maneira que, tudo se manifesta em simultaneidade com a palavra. Através da fala o homem expressa sobre o mundo. Ainda que não pronunciada, a palavra está presente no indizível.  Juntamente com esta definição, também havia outro significado do conceito homem: ente que calcula, mas não necessariamente o saber contar, mas contar com algo, o ser calculador.

 

 

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O conceito originário de humano deriva de humanitas. Aulo Gélio nos dá notícias de que no seu tempo o vulgo tinha por humanitas aquilo que para os gregos era filantropia, que significava certa afabilidade e benevolência para com todos os homens indistintamente. Os romanos eruditos, conhecedores e praticantes da língua latina, tinham por humanitas aquilo que os antigos gregos denominavam paideía (educação), que seria a instrução e formação para as boas artes, pois, dentre todos os seres animados, somente ao homem foi dado o cuidado e o ensinamento das boas artes.

Varrão e Cícero já utilizavam tal conceito. Com efeito, humano, em latim humãnus, significa: de homem ou pertencente a homem, erudito, educado, instruído nas belas-letras, civilizado.

 

 

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O ensino requer dotes naturais e prática.

Deve começar-se a aprender em novo.

                                         Protágoras

 

 

Para o povo da hélade, a educação modela o homem como o oleiro modela a sua argila; a paidéia deve ser de feita através de um processo de construção consciente, do modo correto e sem falha, tornando possível a elaboração do Homem vivo.

Aprendamos com este povo vigoroso, que a educação não deve ser voltada apenas para o trabalho; dentre outras possibilidades, a educação deve formar o cidadão, como também, viabilizar a realização plena do homem enquanto ser humano. A sociedade que não investe em educação está fadada a um futuro sombrio, onde há ignorância, a treva se faz presente.

 

Não é indiferente que o povo seja instruído. Os preconceitos dos magistrados começaram por ser os da nação. Numa época de ignorância, não se tem nenhuma dúvida até quando se fazem os maiores males; numa época de luzes, treme-se ainda quando são feitos os maiores bens.

                                                                                                                   Montesquieu

 

Portanto, a educação* é condição de possibilidade para que o homem se torne cada vez mais humano, demasiado humano!

 

 

 

* Veja o nosso texto: Da Educação - Platão – 427-347 a.C.

 

Créditos

 

GÉLIO, A., Noites Áticas. Trad. José R. SEABRA F.. Londrina: Eduel, 2010

JAEGER, W. Paidéia: A Formação do Homem Grego; Herder; São Paulo; 1972.

MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis;. Trad. H. Barbosa. Edições Cultura, São Paulo, 1945.

HEIDEGGER, M. Heráclito. Trad. Marcia Sá C. Schuback. Ed. Relume Dumará. Rio de Janeiro, 1998.

HEIDEGGER, M. Platão: O Sofista. Trad. M. A. Casanova. Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2012.

PEREIRA, M. H. Rocha,  Hélade Antologia da Cultura Grega, Lisboa: Guimarães Editores SA, 2009.

 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

O filósofo Peter Singer e a crítica ao abate animal


clip_image002[5]O filósofo australiano Peter Singer (1946-    ) mostrou ao mundo, em 1975 com o lançamento da obra Libertação Animal, o sofrimento que os animais passam quando vão para o abate, o que ocorre desde o nascimento até a morte. Singer afirma que o abate causa muito sofrimento aos animais, pois ele explica que os animais são dotados de consciência e sensibilidade e por este motivo devem ser tratados com o mesmo respeito dado aos seres humanos. Singer afirma que a dor e o sofrimento são maus em si mesmo, tem-se que evitá-los, minimizar o máximo, independente da raça, do sexo, ou da espécie do ser que é submetido ao sofrimento.
Nessa questão polêmica do tratamento dado aos animais, ele afirma que devemos aplicar o princípio da igualdade de consideração de interesses, isto é, que interesses iguais devem ser tratados de formas iguais, ou seja, o interesse de um animal pela sua vida deve ser considerado na mesma medida que o interesse de um ser humano pela sua vida. Segundo Singer, muitas das atrocidades cometidas aos animais poderiam ser evitadas se o homem tivesse consciência de que os animais têm sentimentos e sofrem qualquer dor que lhes é causada. A proposta de Singer é acabar com a visão especista que afirma: os animais servem somente para saciar a vontade dos humanos.

O filósofo explica que as pessoas dos grandes centros urbanos têm o seu primeiro contato com os animais na hora da refeição, isto é, quando vamos ao mercado e compramos uma peça contendo pedaços de carne, nem pensamos que aqueles pedaços que estão embalados são de um animal, e agimos como se isso fosse a mesma coisa que comprar um pacote de biscoitos ou de balas.
Singer faz uma critica severa do modo como os animais criados para o abate são submetidos a condições cruéis de confinamento pelo qual eles nem podem se mover, muitas vezes vive até o fim  com luzes artificiais e mesmo em locais sem luz alguma; eles não podem nem andar ou se movimentar, e muitas vezes ocorrem muitas doenças em que o animal morre antes de ser abatido e muitas vezes a epidemia é tão grande que vários morrem; famílias separadas, no caso dos bezerros tirados de suas mães logo nos primeiros dias do nascimento; existem relatos da prática de canibalismo entre as galinhas que vivem em gaiolas tão apertadas que nem sequer se mexem. Em suma, os animais criados nessas “fazendas industriais”, termo este usado por Singer, são privados de liberdade, sobrevivem apenas alimentando-se e dormindo, sem o direito a uma vida plena.

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O pensamento central da filosofia singeriana está embasado de que os animais que são criados para abate devem ser criados em fazendas (como antigamente), ao céu aberto, com seus filhotes, ciscando, banhando-se a luz do sol, sentido a chuva, correndo, ou seja, vivendo uma vida plena, e na hora do abate, o animal não deve perceber e nem sofrer nenhum tipo de dor, a morte gerada tem que ser indolor.

Ver o nosso artigo: Abate Humanitário.


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Singer não critica as pessoas que consomem carne, mas sim o método como os animais são expostos antes do abatimento; infelizmente muitas vezes na hora do abate, são sacrificados de maneira inaceitável por empresas que utilizam métodos de abate arcaico e muitas delas clandestinas. Singer é fervoroso ao afirmar que os animais sentem dor e sofrem, pois possuem sistema nervoso muito semelhante aos nossos. Um exemplo disso é o cérebro do golfinho que tem características anatômicas muito parecidas com o cérebro da espécie humana.
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Singer continua questionando: se os animais não sentem dor, por que eles teriam órgãos internos muito semelhantes aos nossos? Se covardemente, puxamos a orelha de uma criança com força certamente ela sentirá dor, e consequentemente, chorará; ao puxarmos com força a orelha de um cachorro, ele dará um grito! Isso é a forma mais simplória de mostrar que os animais sentem dor.

Veja o nosso artigo: David Hume e a tese de que os animais são dotados de sensações.

Muito se diz que a criação de animais que vão para o abate deve-se ao argumento que no mundo existam muitos seres humanos passando fome, e a criação intensiva e sem freio de animais destinados ao abate é um fato e precisa ser feito, mas Singer explica que nos países africanos, onde centenas de pessoas morrem por ano de fome, exportam toneladas de grãos para os países do primeiro mundo, esses grãos são destinados para a alimentação dos animais que vão ser abatidos. Se os produtores de grãos destinassem esses alimentos para o consumo da população humana, o resultado seria muito positivo, isto é, o déficit mundial de alimentos desapareceria. Isso evitaria a fome em vários países onde a população vive abaixo da linha da miséria, e, evitaria o sofrimento de milhares de animais que passam por grandes constrangimentos desde a hora que nascem até a hora do abate.
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Créditos:
FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Santa Catarina, Editora EDUFSC, 2007.
SINGER, Peter. Libertação Animal. Tradução: Marly Winckler. São Paulo, Editora Lugano, 2008.
SINGER, Peter. Ética Prática. Tradução: Jefferson Luiz Camargo.São Paulo, Editora Martins Fontes, 2006.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

David Hume e a tese de que os animais são dotados de sensações


por Leandro Morena

Na trajetória da história da filosofia alguns pensadores, principalmente os medievais, afirmaram que o homem é superior aos animais. Essa diferença encontra-se na capacidade que o homem tem da linguagem e do intelecto. No período medieval, os pensadoclip_image001[7]res criaram um abismo entre o homem e os animais, pois  o pensamento central naquela época tinha como ideia de que Deus criou o homem à sua imagem*. No pensamento moderno o homem é colocado como o que há de mais importante na Terra - o egocentrismo - e o pensamento mecanicista que ganhara grande aceitação no meio filosófico, fez com que o distanciamento que havia acontecido no período medieval, ficasse difundido no pensamento moderno.

Na contramão desse pensamento, o filósofo escocês David Hume (1711-1776), clip_image002[3]que foi o autor da obra: Tratado da Natureza Humana inovou o conceito de que somente o homem tem a capacidade de sentir, pois nesse tratado Hume dedicou algumas passagens explicando as sensações nos animais, vindo afirmar que os animais assim como os seres humanos possuem essa capacidade. O filósofo escocês chega a essa conclusão, simplesmente, pelo fato da observação do comportamento dos animais, pois estes chegam à espantosa semelhança com o ser humano. Hume cita vários exemplos de sensações que é exclusivamente encontrada no homem e podem, muito facilmente, ser encontradas nos animais; características essas como o amor, o ódio, o orgulho e a humildade. Essa afirmação que Hume faz coloca um questionamento aos adeptos do mecanicismo.
         Hume afirma que os seres humanos são conduzidos pela razão para chegar numa finalidade: realizar ações para a autopreservação da nossa espécie, obtendo-se o prazer e evitando-se a dor. Nos animais, afirma Hume, vemos o mesmo comportamento, realizam ações para chegar numa determinada finalidade que é a autopreservação.
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Segundo Hume, o orgulho e a humildade são paixões encontradas nos animais.
É claro que, em quase todas as espécies de criaturas, mas  sobretudo nas mais nobres, há muitas e evidentes marcas de orgulho e humildade. O próprio porte e o andar de um cisne, um peru ou um pavão mostram à altiva ideia de que tem de si mesmos, e seu desprezo para com os outros. Isso é ainda mais notável porque, nestas duas ultimas espécies de animais, o orgulho sempre acompanha a beleza, e só aparece no macho. A vaidade e emulação dos rouxinóis em seu canto têm sido observada com frequência; e também a do cavalo em sua rapidez, dos cães de caça em sua
sagacidade e olfato, do touro e do galo em sua força, e de todos os outros animais, em suas excelências próprias. Acrescente-se a isso que todas as espécies que se aproximam do homem com tal frequência que chegam a adquirir com ele uma familiaridade mostram um evidente orgulho por sua aprovação, e comprazem-se com seus elogios e carinhos, independentemente de qualquer outra consideração. E não é o carinho de todos, sem distinção, que lhes provoca essa vaidade, mas especialmente o das pessoas que conhecem e amam; exatamente como ocorre quando essa paixão é despertada no homem. Todas essas são provas evidentes de que o orgulho e a humildade não são paixões meramente humanas, estendendo-se, antes, por todo o reino animal.

    Tradução: Déborah Danowski

O amor e o ódio são características encontradas nos animais. Hume cita o exemplo de uma pessoa que trate bem um animal, com carinho e alimentando-o, automaticamente o animal corresponderá com o mesmo gesto de carinho. Se tratarmos um animal mal consequentemente despertamos sua fúria. O animal não somente ama os da sua própria espécie, mas sim qualquer outra espécie diferente, inclusive o homem. Um exemplo, afirma Hume, é o cão que pode amar mais o seu dono do que outro cão. Essa afirmação de Hume leva-nos aos dias atuais, pois hoje observamos que muitos animais como cães e gatos são usados como autoajuda para pessoas idosas internadas em casas de repouso, crianças com doenças graves e pessoas com deficiência mental e observa-se que essas terapias relação homem-animal mostram-nos que está alcançando resultados surpreendentemente positivos.

Hume continua citar mais exemplos de sensações encontradas nos animais:

  É evidente que a simpatia, ou comunicação das paixões, ocorre entre os animais tanto quanto entre os homens. Medo, raiva, coragem e outros afetos comunicam-se frequentemente de um animal a outro, sem que eles tenham conhecimento da causa que produziu a paixão original. Também a tristeza é recebida por simpatia, e tem quase as mesmas consequências, e desperta as mesmas emoções que em nossa espécie. Os uivos e lamentos de um cão produzem uma sensível inquietação em seus companheiros. E é notável que, embora quase todos os animais, ao brincar, empreguem a mesma parte do corpo que usam para lutar, e ajam quase da mesma maneira – o leão, o tigre e o gato usam suas garras; o boi, seus chifres; o cão, seus dentes; o cavalo, seus cascos -, eles evitam cuidadosamente ferir seu companheiro, mesmo sem temer sua reação. Isso é uma prova evidente do senso que os animais têm das dores e prazeres uns dos outros.

Tradução: Déborah Danowski
                                                             
Embora as observações que Hume fizera dos animais não obteve grande efeito na época, como também toda a obra do Tratado da Natureza Humana não teve grande aceitação pelo público, pois a obra não foi bem compreendida e Hume foi acusado de ateísmo e pirronismo e levou-o escrever obras mais acessíveis, e mesmo assim, imortalizou-se como um dos maiores filósofos do seu tempo.
Voltando a questão que Hume propôs de que os animais são dotados de sensações, abriu-se um novo horizonte para que a filosofia questionasse esse distanciamento que os animais têm com os homens e colocasse em dúvida de que os animais agem puramente por automatismo. Filósofos contemporâneos a Hume como Condillac (1714-1780) que aprofundara na questão das sensações nos animais e posteriores a Hume como Bentham (1748-1832) e Schopenhauer (1788-1860) começaram a discussão da capacidade que os animais têm de pensar e sentir e as criticas severas ao sofrimento animal.

* Ver o nosso texto: A superioridade do homem na filosofia Agostiniana.

Créditos:

HUISMAN, Dennis. Dicionário de Obras Filosóficas. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2002;

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Trad. Déborah Danowski. Ed. Unesp. Imprensa Oficial, São Paulo, 2001.