Drag and drop a picture here or Double click to open a picture

Pansophia

Pansophia

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Remédio Socrático – Platão

por Osvaldo Duarte

Na República de Platão, Sócrates prescreve a razão como remédio para suportar o revés nosso de cada dia, isto é, as adversidades que temos de enfrentar em nossa existência.
A lei diz que o que há de mais belo é conservar a calma o mais possível nas desgraças e não se indignar, uma vez que não se sabe qual é o mal e o bem que há em tais acontecimentos, nem se adianta nada, positivamente, em suportar com dificuldade; nem tudo o que é humano merece que se lhe dê tanta importância; e o que poderá acudir-nos o mais depressa possível é entravado pelo desgosto. À reflexão sobre o que nos aconteceu; e tal como se lançam os dados, assim devemos endireitar as nossas próprias posições, de acordo com o que saiu, pelo caminho que a razão escolher como melhor, e, se nos baterem, não devemos fazer como as crianças, que levam a mão ao lugar da pancada e perdem tempo a gritar, mas acostumar a alma a ser o mais rápida possível a curar e a endireitar o que caiu e adoeceu, eliminando as lamentações com remédios. A parte (da alma) que nos leva à recordação do sofrimento é a parte irracional, preguiçosa e propensa à cobardia.
Das três partes ou três elementos da Alma:
O elemento concupiscível constitui a maior parte da Alma e é, dada a sua própria natureza, ser mais insaciável de riquezas, companheiro de certas satisfações e desejos.
Quanto ao elemento irascível, é a parte irracional, pela qual ama, tem fome e sede e esvoaça em volta de outros desejos, deve ser súdito e aliado da razão no domínio do elemento concupiscível.
Ao elemento racional, sendo sábio, cabe o governar e velar pela alma toda, pois é a parte pela qual alma raciocina.
Em suma, compete ao elemento concupiscível, obedecer; ao irascível, assistir à razão; ao elemento racional, governar.
Créditos
PLATÃO. República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Gulbenkian, 2008.



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Contra os Gregos – Taciano


por Osvaldo Duarte

Taciano, o assírio, nasceu por volta do ano 120 e morreu possivelmente no ano 180. Sua educação foi eminentemente grega, da qual conservou em sua vida o gosto literário. Após ter viajado muito e ter-se iniciado em vários mistérios, estudado várias disciplinas inclusive a filosofia, converteu-se ao cristianismo, pois somente os escritos dos hebreus o satisfizeram.  Em Roma conheceu Justino, o mártir, tornando-se seu discípulo. Seu mestre exerceu profunda influência  em seu pensamento; a moralidade severa, o caráter monoteísta que afasta do dogma da criação as curiosidades físicas e metafísicas, encontra aí o seu espírito tacanho terreno fértil para suas obras. O Discurso contra os Gregos é considerado sua obra principal, composto provavelmente entre os anos 166 e 171, que segundo Gilson, é uma declaração dos direitos dos bárbaros, isto é, dos cristãos e do cristianismo, contra os helenos e sua cultura. Sua crítica não traz nada de original, já encontramos em Justino, Josefo e Fílon, argumentos análogos. Num sentimento anti-helênico, afirma que os gregos tomaram da Bíblia várias de suas ideias filosóficas e que nunca intentaram nada, nem mesmo a filosofia.
 
“Creio agora oportuno demonstrar-vos que a nossa filosofia é mais antiga do que as instituições gregas (...). Concedamos que Homero tenha vivido, não após a guerra de Tróia, mas no próprio tempo da guerra e que até tenha combatido no exército de Agamenon e que, se alguém se compraz com isso, tenha nascido antes da invenção do alfabeto. Ficará claro que o dito Moisés é, em muitos anos, mais antigo que a tomada de Tróia, muito anterior à fundação da cidade, a Tros e a Dárdano.”
 
Com a morte de Justino, Taciano permaneceu ainda muitos anos em Roma, continuando a escola de seu mestre, mas afastando-se cada vez mais de suas ideias. Considerava os deuses como personificação da imoralidade; causava-lhe verdadeiro horror as estátuas gregas em Roma, que foram erguidas, segundo ele, em honra aos homens e mulheres que foram criaturas de má nota. Desejava ver destruídas as obras de Eurípides e Menandro, pois foram mestres do deboche.

 
Taciano procura erguer sobre as ruínas da Filosofia grega o edifício do cristianismo; ainda por ter vasta erudição helênica, misturava arbitrariamente os escritos autênticos e apócrifos. Com seu espírito sombrio, violento e furioso contra a Filosofia e a civilização grega, deixava claro a sua opção pelo que chamava filosofia bárbara. Josefo, espírito do mesmo jaez, na as obra Contra Apião, afirmava que Moisés é mais antigo que Homero; nada inventaram os gregos, tudo aprenderam com outros povos, especialmente os orientais. Foram famosos apenas na arte da escrita, suas ideias eram de pouca profundidade, portanto, inferiores às ideias dos outros povos.
Para Taciano a Filosofia grega não melhorou o mundo e, nem mesmo, soube evitar os maiores crimes dos seus adeptos, pois todos eles tiveram seus vícios: Platão um gastrônomo, Aristóteles servil, Diógenes um intemperante; eram cegos a discursar com surdos. Os filósofos gregos não se entendiam, suas opiniões divergiam entre si, já no cristianismo todos professavam as mesmas opiniões: ricos, pobres, homens e mulheres. Tão longe levou suas ideias que chegou a substituir o vinho pela água no sacramento eucaristia um dos rituais tão caro aos cristãos.

(...) Diógenes, com a bravata do seu barril, ostentava a sua independência, depois comeu um polvo cru e, atacado por cólicas, morreu de intemperança; Arístipo, passeando com o seu manto de púrpura, entregava-se à dissolução mantendo a aparência de gravidade; Platão, com toda a sua filosofia foi vendido por Dionísio por causa da sua glutonaria. Aristóteles, que nesciamente estabeleceu limites para a providência e definiu felicidade pelas coisas que ele gostava, agradava depressa o rapaz louco Alexandre (...). Não posso aprovar Heráclito, quando diz: “Eu ensinava a mim mesmo”, por ser autodidata e também soberbo. (...) Também se deve rejeitar Zenão, quando ele afirma que por meio da conflagração universal os mesmo homens ressuscitarão para as mesmas ações (...). Quanto à charlatanice de Empédocles, as erupções da Sicília demonstraram que, não sendo deus, ele mentia dizendo que era.
Não vos deixei, portanto, arrastar por esses bandos de pessoas que gostam mais do barulho do que do saber e que dogmatizam coisas contraditórias, cada um dizendo o que lhe vem à boca. São muitos os choques que acontecem entre eles, pois um odeia o outro, criando doutrinas opostas por pura fanfarronice, desejando postos eminentes. 

 
Nem mesmo a astrologia escapou à sua crítica voraz.

O objeto de perversão deles são os homens, pois, mostrando-lhes, como os jogadores de dados, uma tábua com a descrição da posição dos astros, introduziram o destino (...). Dessa forma, o colérico e o sofrido, o temperante e o intemperante, o pobre e o rico dependem dos demônios que estabeleceram a lei do seu horóscopo. Com feito, a configuração do círculo do Zodíaco é obra de seus deuses e a luz de um deles, quando predomina, triunfa sobre todos os outros, embora aquele que agora foi derrotado costume, mais adiante vencer.

O destino, às vezes irônico, deu a Taciano a morte como herege, mostrando que tanto a Filosofia grega e o cristianismo têm suas cisões partidárias.  O que o perdeu foi seu desejo de ser único.




Créditos
RENAN, E., Marco-Aurélio e o fim do mudo antigo. Porto: Lélo e Irmão, Ltda, 1925.
RENAN, E., Histórias da origem do cristianismo. Porto: Lélo e Irmão, Ltda, 1929.
GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 2007.
PADRES APOLOGISTAS, Tr. I. Storniolo e E. M. Blancin. Patrística, São Paulo: Paulus, 2005.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Ofício do Filósofo

por Osvaldo Duarte


Em Teeteto, Platão nos dá a definição do ofício do Filósofo; pretendemos aqui reproduzir apenas alguns excertos.


Sócrates, que se julga incapaz de produzir saberes, tem como ofício o que se assemelha ao ofício da sua mãe Fenárete, a mais famosa e hábil das parteiras, sendo   este ofício, por culpa de Ártemis, segundo dizem, não podendo gerar filhos tornou-se protetora dos nascimentos e não deu este trabalho de parteira às mulheres estéreis, dada a sua falta de experiência, atribuindo, portanto, este ofício àquelas mulheres incapazes pela idade, de gerar filhos, honrando a semelhança consigo. O atributo da arte de Sócrates (maiêutica) é dar à luz umas vezes, fantasias, outras o que é real, não sendo fácil tarefa diagnosticar, isto é, distinguir o real do irreal, aparência da realidade; sendo que difere daquela das parteiras pelo fato de que são os homens a dar à luz e não mulheres, e ainda, seu ofício é cuidar das almas e não dos corpos que estão a parir. O mais importante da sua arte é poder verificar completamente o fruto do pensamento do jovem, isto é, se pariu uma fantasia ou mentira, ou ainda, se gerou uma autêntica verdade. Sendo muito criticado por não produzir saberes, mas sempre perguntando aos outros enquanto ele próprio não presta declarações sobre nada, alegando que não ter nada de sábio, Sócrates concorda, e atribui a sua esterilidade, tendo como causa disso o deus que o obriga a fazer nascer, impedindo-o de produzir algo próprio, alega ainda que não houve nenhuma descoberta que tenha vindo dele, nascida de sua alma, mas já aos que junto dele convive o deus permite, descobrindo por si próprios, dando à luz muitas coisas belas, não aprendendo nada com ele, sendo ele juntamente com o deus a causa do parto. Aos que se afastam do convívio antes do tempo, isto é, mais cedo do que deviam, abortam as coisas que ainda restavam por causa das más companhias e, alimentando-se mal, destruindo as coisas que ele tinha feito nascer, preferindo as fantasias e mentiras à verdade, tornando-se ignorantes tanto a si próprios, como aos outros. O gênio que o assiste, muitas vezes o impede de se juntar a uns e, a outros permite, estes por sua vez começam a melhorar. Aos que dele se associam, sofrem dores iguais às mulheres que estão a dar à luz, ficam com dificuldades durante noites e dias, mas sua arte tem o poder de provocar a dor e também de fazer cessá-la; fugirão de si mesmos em direção à Filosofia, a fim de se tornarem diferentes e se afastarem daqueles que eram antes.  Aos que não estão de todo prenhes, sabendo que não precisam dele, Sócrates adivinha de quem se beneficiariam sendo companheiros, oferecendo-os a outros sábios e inspirados.


O Filósofo não está preocupado onde fica o Senado ou qualquer lugar comum da cidade; não ouve e nem vê as leis e decretos, o empenho das uniões partidárias, reuniões, festas e jantares, aliás, nem passa pela sua cabeça se dedicar a estas atividades. O filósofo nada sabe, nem sequer sabe que não sabe todas estas coisas, pois, apenas seu corpo está na cidade e aí reside, enquanto seu pensamento, que considera isso de pouca ou nenhuma importância, o desdenha de todas as maneiras. O filosofo observa os astros, explorando por todo lado toda a natureza, no todo de cada uma das coisas, não se importando com aquilo que está perto. Assim como Tales, que caiu num poço quando observava os astros, tinha ânsia em conhecer as coisas do céu, deixando escapar o que tinha à frente. Quem se dedica à Filosofia desconhece seu vizinho, se é mesmo homem ou qualquer criatura, sua preocupação é saber o que é o homem e o que deve fazer ou sofrer uma natureza desse gênero, diferente das outras, isso é o que se preocupa em explorar. Quando diante de um tribunal ou noutro lugar qualquer, sendo forçado a discutir sobre o que está à sua frente, provoca risos em toda multidão, pois cada dificuldade é um poço que cai devido à sua inexperiência. Quando o insultam, nada tem a censurar a ninguém, visto não estar preocupado com isso; quando elogiado por um tirano ou rei, pensa que está ouvindo elogio de um guardador de rebanho, porqueiro ou pastor, contente por os animais estarem a dar muito leite, pensando que o rei ou tirano pastam ou mugem, sendo forçoso que cresçam. Quando ouve dizer que alguém possui muitas terras, pensa que ouve uma quantidade muito pequena, pois pensa que está habituado a ver a terra inteira. Se alguém celebra sua linhagem de ricos, ele acha este louvor uma estupidez acompanhada da visão limitada, de alguém incapaz pela falta de educação, calcular que já teve milhares de antepassados, tendo havido entre eles ricos, pedintes, reis, escravos, bárbaros, gregos. Em todas as ocasiões é escarnecido pela multidão por parecer arrogante e, por outro lado, ignorante das coisas que têm ao seu pé, atrapalhando-se em situações concretas. O filósofo cresce com tempo livre e em liberdade.

Créditos
PLATÃO, Teeteto, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010. (Tradução de Adriana M. Nogueira e Marcelo Boeri, com Prefácio de José Trindade Santos.)


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Alegoria da Caverna

Sombra e luz em Platão – A Leitura de Lebrun


por Osvaldo Duarte
Em um dos discursos mais conhecidos de Platão - “A Alegoria da caverna”, mestre Lebrun examina o significado de iluminação, isto é, saída das trevas; para tal empresa divide aquela história em quatro episódios:
I) Os prisioneiros, acorrentados, imobilizados, não podendo mover a cabeça, observam o desfile de marionetes através das sombras projetadas na parede. Eles tomam por seres verdadeiros estas marionetes e creem ouvi-las falar, quando na verdade são as vozes dos carregadores.
II) Um dos cativos é liberto e fica deslumbrado pela luz do fogo, é forçado a olhar as marionetes que passam por cima do muro.
III) Retirado do antro fica cegado pela luz sendo incapaz de observar os seres reais. Aos poucos seus olhos vão se acostumando, observa então, as sombras e os reflexos, depois os próprios seres que projetam estas sombras.
IV) Seu olhar eleva-se em direção ao Sol. Conclui que esse produz a vida e as estações, que é a “causa” de tudo que ele via quando estava preso na caverna - para onde é forçado a retornar.
A caverna significa uma educação (paideía), para os prisioneiros as sombras são as próprias coisas e a luz da fogueira não é percebida como luz artificial. Somente quando liberto, vê as marionetes iluminadas pela luz da fogueira e consegue distinguir a sombra da realidade; mas está ainda longe de conhecer a verdade. Como ainda não vê os carregadores que passam embaixo do muro, ignora que as marionetes são apenas imagens de homens e de animais manipuladas por operadores não discernindo aparência da realidade. Somente ao sair da caverna é que poderá ver o que se passava do outro lado do muro, passando a distinguir as imagens dos seres vivos dos próprios seres vivos, travando conhecimento. Neste processo o liberto fica deslumbrado pelo fluxo de luz, durante certo tempo contemplará as sombras e os reflexos das coisas sensíveis, mas ainda confundirá o que chamamos de “coisas reais” com as suas imagens. No IV episódio ele verá o Sol de frente, mas ainda não será o fim da aventura.
Não é apenas pelo fato de ver o Sol que o torna superior aos demais cativos, mas porque compreende que é o Sol que garante a existência do mundo e de todos os seres vivos, dos artefatos, do fogo que acende e das sombras projetadas. É nesse momento que ele, enfim, tomou consciência de toda situação e pôde figura-la. Nesse instante a luz o inunda, pois não há mais nenhuma confusão entre aparência e realidade. Lebrun lembra que ao longo desta viagem em direção ao Sol, o liberto precisou distinguir a própria coisa daquilo que ele acreditava ser a própria coisa na etapa precedente.  Assim, continua Lebrun, cada experiência contém autocrítica da experiência anterior.
 Mas o que é a saída das trevas? Para Lebrun, a iluminação significa não uma simples ignorância, mas a ingenuidade, o que segundo ele, é completamente diversa. Platão percebe a dificuldade em dissociar a aparência da realidade, a imagem do seu original. Para Lebrun a questão não é que os homens tenham de se relacionar com as imagens: é que não sabem bem o que são imagens. A razão desta cegueira continua Lebrun, é mais simples e mais profunda, pois os homens ainda não pensam por meio da separação “aparência/realidade”, tendo de certo modo razão, pois, na vida diária a aparência não é oposta à realidade. Isso é bom, o viver sem a desconfiança de que não sabem ser a aparência, e que essa ingenuidade jamais seja completamente dissipada. Aquele que desconfiasse de que o aparecer não é senão a aparência, jamais de apaixonaria ou então seria eternamente presa ao ciúme. Essa ignorância relativa a nosso lugar é indispensável à vida.
É justamente esta ignorância que é dissipada pela luz platônica. O prisioneiro é arrancado do seu estado de inconsciência. Ele ignorava que vivia acorrentado em um antro, não tinha a menor ideia de que seu “saber” era um falso saber. Daí a resistência, a má vontade quando é constrangido a aproximar-se das marionetes e é obrigado a dizer o que é (quando é submetido ao exame dialético). A formação que lhe é imposta, não o obriga apenas em perceber as paisagens, mas também em fazer com que visite um domínio desconhecido. O importante é que o lugar em que outrora vivia, agora é completamente outro. Quando retornar o viajante não será mais o mesmo, seus antigos companheiros não o “reconhecerão”.

A ignorância que nos faz envergonhar é muito específica: cegueira acrescida de estupidez. A esta ignorância, Lebrun usa a palavra grega amathía: nada saber e crer que sabe. Para sair desta amathía é preciso “virar a cabeça”,“violentar-se”, deixar que o educador use de violência. Não basta apenas convida-los a observar melhor: é preciso obrigar aqueles que são capazes (estes não muitos) a olhar alhures.
 
Créditos
LEBRUN, G. A Filosofia e sua História, Cosacnaify, 2006.


sábado, 1 de outubro de 2011

Do Conhecimento Exotérico e Acroático

por Osvaldo Duarte

Segundo Aulo Gélio, Aristóteles transmitia  aos  discípulos seus conhecimentos e comentários de duas espécies: exotéricos e acroáticos.  As disciplinas exotéricas eram aquelas referentes às meditações retóricas e à faculdade de argúcias e, também, comentavam-se as notícias atinentes aos assuntos civis; a outra espécie de conhecimento, isto é, os acroáticos, versavam sobre a Filosofia remota e mais sutil e as que diziam respeito à contemplação da natureza e aos debates dialéticos. No Liceu, as manhãs eram consagradas ao ensino das disciplinas acroáticas, sendo admitidos somente seus discípulos, ou seja, aqueles que exploravam seus intelectos e já possuíam os elementos da erudição, aplicando ao labor do aprendizado. Ainda no Liceu, à tarde, Aristóteles  dava outro curso oferecendo a todos os jovens indistintamente sem seleção, sendo esta audição exotérica, na qual  tratava do exercício do discurso; a este curso o estagirita  chamou de passeio vespertino, ao outro, passeio matutino; pois sempre dava seus cursos passeando (peripatético).  A. Gélio ainda nos diz que, o Mestre de Alexandre dividiu distintamente seus livros e comentários de todos os assuntos tratados no Liceu, a uns chamou de “exotéricos” e a outros “acroáticos”.
Alexandre ao tomar conhecimento da publicação daqueles livros “acroáticos” por Aristóteles, ainda que estivesse ocupado com grandes atividades bélicas, enviou carta ao Mestre dizendo que não agira corretamente, porque teria divulgado por livros aquelas disciplinas acroáticas nas quais o houvera instruído: “Pois em qual outra atividade, disse-lhe, poderemos estar à frente dos demais, se ao tornar-se perfeitamente comum a todos o que recebemos de ti? Eu de fato quereria exceder mais pelo conhecimento do que pelas riquezas e opulências”.
Aristóteles respondeu-lhe, segundo A. Gélio, aproximadamente nesses termos: “Os livros acroáticos, que reclamas terem sidos publicados e daí não ocultados como secretos, fique sabendo que nem foram editados e terem sido nem não editados, porquanto só serão inteligíveis por aqueles que nos ouviram”.
A. Gélio afirma que sua fonte foi o livro do Filósofo Andronico, e elogia as epístolas como sutis e de brevidade elegantíssimas. 

Abaixo reproduzimos as cartas, com a tradução do professor José R. Seabra F.:

[De Alexandre a Aristóteles, sucesso.
Não agistes corretamente tendo publicado os acroáticos dos nossos estudos, pois de quem então nos avantajaremos, nós dos outros, se, quanto aos estudos que recebemos, estes de todos se tornarem comuns? E Eu preferiria avantajar-me sobre as melhores coisas pelas experiências a avantajar-me pelas forças. Adeus, sê forte.]

[De Aristóteles a Alexandre, sucesso.
Escreveste-me sobre os estudos acroáticos pensando ser necessário preservá-los secretos. Sabe então que eles tanto são publicados com não são publicados: pois compreensíveis são apenas aos que nos ouviram.
Adeus, passa bem, rei Alexandre, sucesso.]

Créditos
GÉLIO, Aulo. Noites Áticas. Tradução: José R. SEABRA F.. Londrina, Eduel, 2010.

domingo, 25 de setembro de 2011

Da Amizade

por Osvaldo Duarte


Para Aristóteles a virtude da Amizade é a relação entre os homens que engloba todos os sentimentos de afetos que unem um homem a outro. Para o Filósofo estagirita, três são os objetos dignos de serem amados: o bem, o agradável e o útil, ou seja, são três as espécies de Amizade: a Amizade de virtude, de prazer e de utilidade. Mas estes três objetos não têm o mesmo valor, pois para Aristóteles aquele que é amado por interesse ou pelo prazer, não é amável por si mesmo, mas tão-somente por acidente, pois é procurado por interesse ou pelo prazer que estes podem dar.

É própria dos jovens a Amizade de prazer porque dada a idade ainda não podem compreender as demais; já aos velhos, a Amizade de interesse é mais comum, pois não podem compreender as outras. Para Aristóteles, a verdadeira Amizade é a de virtude, que por excelência, o amigo virtuoso é amável em si e por si, nesta Amizade o amigo não é amado pelo prazer da sua companhia ou pela utilidade que possa nos oferecer, mas somente pela própria virtude que amamos nele. A Amizade virtuosa contém as outras duas, pois, o amigo bom e honesto é, também ao mesmo tempo, um amigo útil e agradável. Chamamos impropriamente de Amizade de prazer e de interesse, porque se assemelham à amizade virtuosa, pois aquelas são imperfeitas, afeiçoando-lhe o aspecto secundário, o de prazer e do interesse. Segundo o Mestre de Alexandre, a Amizade está fundamentada na comunidade e podemos distinguir três espécies: a que tem por interesse comum, como por exemplo, entre companheiros de viagens, ou entre membros de uma tribo, ou ainda, entre cidadãos de um Estado; a outra espécie é a doméstica: que têm como escopos estabelecer uma família e proporcionar o bem geral da vida; e a terceira, entre pessoas que não tem outro fim fora dela, o que poderíamos chamar de amizade entre as pessoas.

Créditos
ARISTÓTELES. A Ética, São Paulo, Atena Editora, 1962



quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O remédio cartesiano

por Osvaldo Duarte

Descartes, ao que tudo indica parece ter exercido em determinada época o papel muito próximo, ou melhor, uma postura semelhante a do filósofo doméstico como confessor e conselheiro junto à Princesa da Boêmia, por quem nutria uma grande afeição pessoal. Filha do rei Frederico V, da Boêmia, a Princesa Palatina contava com apenas 24 anos quando iniciou as suas correspondências com Descartes a propósito das “Meditações” em 1642. De cultura ímpar, de alto valor intelectual e moral, Elisabeth falava várias línguas- o francês, o inglês, o alemão, o italiano e o flamengo; dedicava-se também, aos estudos da matemática e das demais ciências e da Filosofia.


Ao perceber um espírito tão elevado, nosso Filósofo não hesitou em dedicar-lhe os “Princípios”: “... Jamais encontrei alguém que tenha tão bem, e tão inteiramente, entendido tudo quanto meus escritos contêm.” Certa feita, encontrando-se Elisabeth na Alemanha, incumbiu sua irmã Sofia, de intermediar suas correspondências com Descartes. Como cavalheiro que era, assim dirigiu-se à Sofia: “ Vossa irmã imita a Soberana Divindade, que costuma empregar Anjos para receber as submissões dos homens e fazer chegar até eles as suas ordens.”

Em maio de 1645, sabendo da enfermidade da princesa, que estava sofrendo de uma febre renitente acompanhada de uma tosse seca, Descartes escreveu à Elisabeth expressando seu pesar oferecendo-lhe alguns conselhos, dizendo-lhe: “A causa mais comum da febre renitente é a tristeza.” Para que o remédio não parecesse por demais amargo, amenizou:  “Bem sei que seria imprudente querer convencer alguém a ser feliz, quando o acaso lhe inflige a cada dia novas fontes de pesar; e não sou daqueles filósofos cruéis que desejam que os sábios sejam insensíveis.”
O remédio para a cura da doença da Princesa Palatina era:
“Parece que a diferença entre as grandes almas e as que são vis e comuns consiste, principalmente, no fato de que as almas comuns entregam-se a suas paixões, e só são felizes ou infelizes conforme sejam agradáveis ou desagradáveis as coisas que lhe sucedem; as grandes almas, por outro lado, pensam de um modo tão vigoroso e convincente que, embora também elas tenham paixões, e aliás, paixões amiúde mais violentas que as da gente comum, sua razão sempre se mantém senhora de tudo, e até faz com que seus dissabores lhes sirvam e contribuam para a perfeita felicidade  de que elas gozam nesta vida.”
Elisabeth respondeu ao nosso Filósofo que jamais nenhum médico lhe prescrevera remédio tão salutar. E assim,  prossegue nosso Filósofo:
"Consideremos alguém que tivesse todas as razões para ser feliz, mas assistisse continuamente à encenação de tragédias repletas de acontecimentos desastrosos, e que passasse todo o seu tempo a tecer considerações sobre coisas tristes e dolorosas. Suponhamos que ele soubesse que eram histórias imaginárias, de modo que, conquanto elas lhe arrancassem lágrimas dos olhos e lhe comovessem a imaginação, em nada afetassem seu intelecto. Creio que, por si só, isso já bastaria para fechar paulatinamente o coração e para refazê-lo suspirar de tal maneira, que a circulação do sangue se retardaria e se tornaria mais vagarosa (...). Por outro lado, poderia existir alguém com muitos motivos autênticos de aflição, mas que se empenhasse com tal afinco em controlar a rumo da sua imaginação que jamais pensasse neles, salvo se compelido por uma grande necessidade prática, e que se dedicasse o resto do seu tempo à consideração de coisas capazes de trazer satisfação e alegria. Isso o ajudaria, permitindo-lhe um julgamento mais sensato das coisas importantes, pois ele a examinaria sem paixão. Outrossim, não duvido que, por si só, isso já o lograsse restabelecer-lhe a saúde, ainda que seu baço e seus pulmões se achassem em estado tão precário, em decorrência do mal temperamento de sangue, produzido pela tristeza.” Descartes assim conclui: (...) Mas sempre tive uma inclinação a olhar as coisas pelo ângulo mais favorável e a fazer com que minha felicidade principal dependesse apenas de mim mesmo.”

Créditos
GAUKROGER, S. Descartes Uma biografia intelectual, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 1999.
DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, trad. Torrieri Guimarães, São Paulo, Hemus, 1968.
LINS, I. Descartes época, vida e obra, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1964.



segunda-feira, 15 de agosto de 2011

John Locke é um filósofo especista ou não?

por Leandro Morena

John Locke é um filósofo inglês, nascido em 1632 no mesmo ano em que nasceu o filósofo holandês Baruch Espinosa, ele foi representante do empirismo, ideólogo do liberalismo e médico. Dedicou-se a filosofia política. Com uma obra imensa, entre elas Ensaio acerca do Entendimento Humano, a filosofia lockeana apesar de não ter dedicado nenhum título aos animais, existem várias passagens que mostram que o pensador britânico tinha algum interesse nos animais. Mas antes de apresentar o pensamento lockeano para com os animais, tomarei a liberdade para apresentar o que significa o especismo.
O termo especismo foi criado no início da década de 70 do século passado pelo psicólogo e filósofo Richard Ryder (1940- ). Este termo significa que nós (seres humanos) nos preocupamos somente com os seres da nossa espécie, as outras espécies não nos importam e podemos fazer o que bem entender com elas.

Na história da filosofia tiveram pensadores especistas como também aqueles que defendiam as outras espécies. Na Grécia antiga já se discutia a questão dos animais. Filósofos de prestígio como Platão e Aristóteles discutiam esse assunto, e nos seus pensamentos colocou-se o homem como o ser supremo na natureza. Aristóteles não negava que o homem é um animal, mas a diferença dele com as outras espécies é que o homem é um animal racional. Na Idade Média que vigorava o Teocentrismo (Deus como o centro do universo), os pensadores daquela época afirmavam que o homem foi feito à imagem de Deus e por esse motivo as outras espécies foram criadas somente para servi-lo.

São Tomás de Aquino (1225-1274) fez a separação do homem com os animais e afirmava que o animal agia como um relógio, tese esta que seria utilizada por Descartes (1596-1650). Na filosofia Moderna esse conceito da superioridade do homem com as demais espécies não mudou muito. O Teocentrismo deu lugar ao Antropocentrismo e o homem passou a ser o centro do universo e, consequentemente, veio à tona a singularidade da vida humana. O homem como o ser mais perfeito e sábio que há na natureza.

Vale lembrar que nessa época filósofos contemporâneos a Locke como Descartes e Espinosa colocaram um grande abismo entre os homens com as demais espécies. Na obra o Discurso do Método, o mecanicismo cartesiano afirma que o corpo humano e dos demais animais agem como uma máquina, mas diferentemente do homem que tem a capacidade da linguagem e da razão e por isso é constituído por uma alma imortal, os animais, por não possuírem essa tal capacidade não possuem uma alma imortal e por não possuí-la não sentem dor, prazer, etc., em suma, agem simplesmente como uma máquina fria. Se cortarmos um gato o seu grito não é dor e sim um som de uma máquina.
 Descartes, afirma que os animais se comparam com um relógio e que a diferença entre eles é que os animais são máquinas mais sofisticadas do que um relógio, pois foram criados por Deus, enquanto o relógio foi criado pelo homem. O obscurantismo da teoria mecanicista teve aceitação por muitos outros pensadores.  Já o filósofo Espinosa na sua obra a Ética, afirma que o homem tem que se preocupar somente com os da sua espécie e poderíamos fazer o que quisermos com as outras espécies, e ele vai além, afirma que não temos que sentir dó se os animais são submetidos a maus tratos, pois os que defendem os animais estão baseados numa superstição. Ele não negava que os animais sentiam, mas que esse “sentir” seria completamente diferente dos seres humanos, ou seja, a ética espinosana piora ainda mais o conceito filosófico dos animais, simplesmente a definição de especismo vista acima.


Depois desse breve resumo gostaria de colocar a questão sobre o especismo ou não em Locke. Numa de suas passagens, ele afirma que alguns homens são capazes de vender seus filhos e matar seus idosos, prática essa que não aconteceria com as outras espécies, pois os animais lutariam e morreriam para defender seus filhotes. Locke era ao contrário do mecanicismo e acreditava que os animais possuíssem a capacidade de raciocinar. 

 O filósofo empirista explica qual é a diferença dos animais com o relógio, e diferentemente de Descartes, ele afirma que nos animais a adequação da organização e do movimento é gerado no interior deles e no caso do relógio, o movimento é gerado no exterior.  Em outra passagem, Locke afirma que o movimento de um beija-flor não passa de um puro movimento mecânico, mas não acredita que esse movimento teria uma causa mecânica, vale à pena transcrever essa passagem. A saber:


                     Pois embora eu admita que o som  pode causar mecanicamente um certo movimento nos      espíritos animais, nos cérebros desses pássaros, enquanto a melodia está sendo realmente tocada; e esse movimento pode ter continuidade nos músculos das asas, e assim o pássaro ser mecanicamente afugentado por certos ruídos, porque isso pode ser favorável à preservação do pássaro: entretanto, isso não pode ser admitido como razão que explique por que, enquanto a melodia estava sendo tocada, e muito menos depois que ela cessou, o movimento nos órgãos vocais do pássaro teria uma causa mecânica em conformidade com as notas de um som estranho, cuja imitação não pode ter a menor utilidade para a preservação da ave (Yolton, 1996, p.35).

Locke nunca negou a capacidade que os animais têm de raciocinar. Este raciocínio é feito através de ideias particulares. Segundo Yolton, um exemplo que Locke apresenta para tornar verdadeira a sua afirmação de que os animais pensam, é o esforço dos pássaros que aprendem melodias para alcançar um timbre desejado, pois eles têm percepção e retêm idéias em sua memória. Segundo Feijó, Locke afirma que a percepção é encontrada num certo grau em cada classe de animais, sendo que em muitos animais a recepção de sensação é bastante limitada. Locke cita o exemplo da ostra que não tem a mesma viveza de sentidos que um homem ou outro animal mais sofisticado, pois em nada adiantaria tê-la, pois a capacidade de locomoção não existe nesse animal. Segundo Feijó, esse exemplo da ostra mostra que existe apenas alguma fraca percepção que o distingue da insensibilidade absoluta. Mas essa situação vivida pela ostra pode também ser vivida pelo homem, segundo o filósofo, a velhice ou a perda total de algum dos sentidos coloca-o no mesmo patamar da ostra.
O leitor pode se perguntar: Por que esse título: se é especista ou não? Pois ele mostrou-se preocupado com os animais, e jamais poderíamos colocá-lo como especista?  Descreverei algumas passagens de Locke que pode colocá-lo como um filósofo especista.  Ele afirmava sua irritação ao observar às crianças judiando dos animais, o pensador afirmava que as mães tinham que educar aos seus filhos para que estes passem a respeitar mais os animais, não os maltratando e nem os deixando sem comida e água. Locke chegou a afirmar que às crianças que judiam dos animais, futuramente serão seres humanos de mau caráter. Vemos aqui, que a preocupação de Locke com as crianças que judiam dos animais, está no âmbito que essas mesmas crianças ao alcançar a vida adulta serão pessoas que trarão problemas para a sociedade humana, ou seja, é inaceitável isso para o bem do homem, nitidamente nota-se que a preocupação não é com os animais. Por algumas vezes ele colocou os animais no mesmo patamar dos homens equiparando-os. Quando Locke fez críticas aos fanáticos religiosos ele compara os ignorantes aos animais, mostrando o seu reducionismo antropocêntrico especista. A saber:

  Assim sendo, com efeito, a religião, que mais nos deveria distinguir das bestas, e deveria mais particularmente nos elevar, como criaturas racionais, acima dos brutos, consiste nisso, ou seja, os homens frequentemente, através delas, parecem mais irracionais e mais insensíveis do que as próprias bestas. (...) não causa surpresa que algumas de nossas funções mentais sejam compartilhadas com alguns animais. (Yolton, 1996, p.34).

Noutra passagem, segundo Yolton, Locke fala de um homicida que perde a razão e mata outro homem, este homicida não merece viver mais entre as pessoas de bem e deve ser destruído como um leão, pois jamais um homem poderá conviver e ter segurança ao lado de um leão. Aqui Locke coloca uma negatividade tremenda na imagem dos animais como a própria escolástica colocou, pois tudo que se é de errado no ser humano é comparado aos animais, ou seja, um homicida seria uma fera, sem dó, sem piedade e sem sentimentos e mataria como as bestas. Locke era um grande leitor da bíblia e ele afirmava o que a própria bíblia afirma e a filosofia escolástica afirmou por quase 15 séculos: “Os animais são criados por Deus somente para servir aos seres humanos, pois o homem tem o direito de usar os animais como bem entender, afim da preservação da espécie humana”.
Visto às afirmações acima, acredito que John Locke apesar da sua preocupação para com os animais, ele acabou aderindo a esses aspectos funestos do especismo reducionista do pensamento moderno, por isso posso, sem constrangimento, alcunhá-lo como sendo um filósofo especista.

 Referências Bibliográficas

DESCARTES, René. Discurso do Método. Os Pensadores. 2.ed. Tradução: J.Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo, Abril Cultural, 1979.
 ESPINOSA, Baruch. A Ética. Os Pensadores. 2.ed. Tradução: Antõnio Simões. São
Paulo, Abril Cultural, 1979.
 FEIJÓ, Anamaria. Utilização de animais na investigação e docência. Porto Alegre,
EDIPUCRS, 2005.
LOCKE, John. Ensaio acerca do Entendimento Humano. Os Pensadores. 2 ed. Tradução:Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. São Paulo, Abril cultural, 1978.
 YOLTON, John W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996.
 Figura 1: Disponível em:
Acesso em 09. Jul. 2011
Figura 2: Disponível em:
Acesso: 12. Jul. 2010
Figura 3: Disponível em:
Acesso em: 10. Jul. 2011
Figura 4 e 6: Disponível em:
 Acesso em: 09. Jul. 2011
 Figura 5: Disponível em:
 Acesso em: 10. Jul. 2011




terça-feira, 9 de agosto de 2011

Remédio Senequiano

por Osvaldo Duarte


Consolação a Marcia

Sêneca escreve por volta do ano 40 uma carta a Marcia, nobre dama da sociedade romana, com o intuito de demover toda sua tristeza, pois, Marcia está com o coração dilacerado por mais de três anos pela morte de seu filho Metílio.
Embora o conteúdo desta missiva se refira a uma situação particular, Sêneca nos ensina a compreender o homem através de uma visão eminentemente estoica. O pensador nos ajuda não só a encarar a morte, mas também nos auxilia a enfrentar outros problemas, ao que comumente chamamos “lidar com as nossas perdas.”
Pretendemos aqui não abordarmos totalmente a carta, mas tão-somente extrairmos alguns componentes que nos permitam a elaboração do remédio, pois, o remédio natural, o tempo, que, segundo nosso pensador, acalma até mesmo as maiores aflições, muitas vezes perde a força, daí a necessidade de outros lenitivos. Sêneca nos alerta que as feridas são mais facilmente curadas enquanto recentes, pois, assim como os vícios que são radicados profundamente se não tratados enquanto brotam, assim os sentimentos infelizes e miseráveis se alimentam da última amargura tornando a dor do espírito infeliz um prazer vicioso e nos avisa que o tratamento desta dor não poderá ser feito com complacência e nem de modo suave, mas violento.
Logo no início, nosso pensador cita dois exemplos de mães que tiveram a mesma desdita, Otávia e Lívia. Quanto à primeira, assim como Marcia, se entrega totalmente à dor, mas já a segunda, Lívia, esposa do imperador Augusto, que é a que nos interessa aqui, superou a sua desventura com o auxílio do filósofo doméstico Areu, conselheiro do Imperador, ouvindo seus argumentos:
“... Não te voltes para o convívio e para os agradáveis encontros com teu filho, nem para as suas carícias doces e infantis, nem para os progressos dos seus estudos. Tu te apegas àquele último aspecto dos fatos e como se ele, por si próprio, fosse pouco terrível, tu lhe acrescentas o quanto pode de crueldade. Não desejes, eu te suplico, a glória extremamente perversa de ser considerada a mais infeliz mulher! Considera, ao mesmo tempo, que não é grande coisa mostrar-se forte na prosperidade, quando a vida corre um curso tranquilo, nem é por certo um mar tranquilo e um vento favorável que revelam a habilidade de um piloto: é necessário que se verifique alguma adversidade, para que se ponha à prova espírito. Portanto, não te abatas; pelo contrário, opõe-te com passo firme e, seja qual for o peso que tenha caído sobre ti, apenas refeita do primeiro susto, resiste. Com nenhuma coisa se provoca maior despeito da sorte do que  com um espírito sereno.” Após estas palavras mostrou-lhe o filho que restava vivo, mostrou-lhe os netos que lhe dera o filho perdido.
Após narrar o consolo de Areu, Sêneca prossegue:
“... Se a fatalidade pode ser vencida com lágrimas, choremos: que todo dia transcorra em meio à dor; que a tristeza consuma nossa noite de sono; que cravem as mãos no peito dilacerado, que se faça violência à própria face e que uma proveitosa aflição se exercite em todo gênero de crueldade. Mas, se os mortos não são ressuscitados por nenhum pranto, se o destino imutável e eternamente fixo por nenhuma desgraça é alterado. E se a morte mantém consigo tudo o que arrebatou, cesse nossa dor que é inútil.”
Nosso filósofo continua mostrando a inutilidade desta dor que, até mesmo nos espíritos mais fortes há amargura e angústia, pois, o que a imaginação acrescenta é mais do que a natureza impõe:
“Considera quão veementes são os sofrimentos dos mudos animais e, contudo, quão breves: o mugido das vacas é ouvido por um ou dois dias, nem dura muito mais tempo aquele galopar vago e louco das éguas; as feras, depois que seguiram os vestígios dos filhotes e vaguearam pelas selvas e muito mais vezes voltaram para a morada devastada, em pouco tempo acalmam a sua raiva; as aves, depois que com um grande barulho esvoaçaram ao redor dos seus ninhos vazios, em pouco minutos, contudo, recomeçam tranquilas os seus vôos. Nenhum animal chora por longo tempo a perda de seus filhos, a não ser o homem, que permanece ligado à sua dor...”
Sêneca ainda persiste, lembrando que não prevemos nenhum mal antes que ele chegue até nós, como se fôssemos imunes, e que não somos advertidos pelas desgraças alheias, esquecendo-nos que esses males são comuns a todos. Quantos ricos ficaram pobres diante de nossos olhos, esquecendo-nos que os nossos bens estão igualmente em risco. “A qualquer um pode acontecer o que pode acontecer a alguém.” Todas as coisas que nos são exteriores, crianças, honrarias, riquezas, etc., nos são dadas em empréstimo, um dia deverão retornar a seus donos: uns no primeiro dias, outros no segundo dia, poucos permanecem até o fim.
“Frequentemente o espírito deve ser aconselhado para que ame todas as coisas como se estivessem para nos deixar, e até como nos estivessem deixando. Desfrutai com avidez as alegrias que vos podem dar os filhos; permiti, em compensação, que encontrem em vós as alegrias que lhes podeis dar e aproveitai; sem demora, toda a felicidade: nada está assegurado quanto à noite de hoje. (...) Se deploras a morte do seu filho, a culpa é do momento em que nasceu, pois a morte lhe foi anunciada ao nascer. Com esta condição ele te fora dado, este destino o acompanhava desde o teu ventre.”
A esta altura da carta, nosso filósofo define o que é o homem:
“O que é o homem? Um corpo débil e frágil, desnudo, indefeso por sua própria natureza que tem necessidade do auxílio alheio, exposto a todos os danos do destino; um corpo que quando exerceu bem os seus músculos, é pasto a qualquer fera. É vítima de qualquer uma; composto de matéria inconsistente e mole, e brilhante somente nas suas feições exteriores; incapaz de suportar o frio, o calor, a fadiga e, por outro lado, destinado à desagregação pela inércia da ociosidade; um corpo preocupado com seus alimentos, por cuja carência ora se enfraquece, por cujo excesso ora se rompe; um corpo angustiado e inquieto por sua conservação , provido de uma respiração precária e pouco firme, a qual um forte ruído repentino perturba; um corpo é fonte doentia e inútil, de contínuo perigo para si mesmo. (...) Não obstante, quantos tumultos provoca esse desprezível animal, a quão altos pensamentos aspira, esquecido da sua condição! Revolve o espírito no coisas imortais, coisas eternas e faz planos para seus netos e bisnetos, enquanto nele planeja projetos duradouros, a morte o pressiona: e isto que se chama velhice é um período de pouquíssimos anos.”
“É melhor termos uma felicidade ainda que passageira do que nenhuma.”
Vejamos primeiro que mal é preciso ser curado, depois, de que maneira. É a perda daquele que amou que a faz chorar. (...) Na verdade não choramos os ausentes e os que estão ausentes enquanto viverem, ainda que todo o prazer da convivência nos tenha sido arrebatado com a visão deles. A nossa imaginação é, pois, que nos atormenta, e cada mal é tão importante quanto nós o avaliamos. Temos em nós o poder do remédio: consideremos que os mortos estejam ausentes e nos enganemos a nós mesmos. Nós os deixamos partir, ou melhor, nós os enviamos antes para segui-los.
O que é a morte para Sêneca:
“A morte é uma libertação de todas as dores e o término além do qual os nossos males não ultrapassam; ela nos leva de volta àquela tranquilidade, na qual jazíamos antes de nascer. (...) A morte não é um bem nem um mal. Pois só pode ser um bem ou mal aquilo que é alguma coisa, porém, o que é o próprio nada e ao nada se reduz, não influi em nossa sorte: pois coisas são más e boas se exercem sobre algum objeto. O destino não pode dominar aquilo que a natureza abandona, nem pode ser infeliz aquele que não existe.”
Sêneca não só nos dá o remédio estoico, como também, nos fornece uma possibilidade da compreensão e uma reflexão sobre a fragilidade humana perante a vida. Muitas vezes a nossa imaginação pesa sua mão sobre nossos ombros, tornando ainda maior, quase insuportável as adversidades que o destino traçado pelas Moiras nos oferece. Mas devemos aceitar pacientemente nosso fado, sem lamúrias, sem lágrimas, sem reclamação, vivendo conforme a natureza, cumprindo o papel que nos foi dado. Se conseguirmos, seremos felizes, se não, o tempo dirá; afinal, somos humanos, demasiado humanos!

                    “Uma só maneira existe de vivermos muito: se vivermos intensamente.”
Referências Bibliográficas
SÊNECA, Cartas Consolatórias, tradução Cleonice Furtado Mendonça Van Raij, Rio de Janeiro, Pontes, 1992.

domingo, 24 de julho de 2011

Protágoras- A origem da Política e das Cidades


por Osvaldo Duarte

O que nos mantêm unidos e a primeira lei divina.


O Homem após ter vindo à luz, já em posse do lote divino, isto é, da sabedoria e da arte de trabalhar com o fogo, devido à sua afinidade com os deuses, foi o único dentre os animais a levantar altares e fabricar imagens deles. Não demorou muito para que pudessem emitir sons e articular palavras, fazer casas, vestes, calçados, leitos, a procurar na terra os alimentos necessários à sua sobrevivência. Assim providos, viviam dispersos; não havia ainda cidades, e, por este motivo, eram mortos pelos animais selvagens, pois, eram inferiores em condições físicas em relação a estes. As artes mecânicas lhe asseguravam a sua subsistência, porém, não serviam na sua luta contra os demais animais, pois, carecia ainda da arte política e, conseqüentemente, da arte da guerra. Para conseguirem sobreviver fundaram cidades, mas com isso, causavam-lhes danos recíprocos, assim, voltavam a dispersar-se sendo destruídos como antes.

Zeus, preocupado com a geração dos homens, chamou Hermes e ordenou que levasse aos homens o PUDOR E A JUSTIÇA, como princípio ordenador das cidades e laço de aproximação entre os homens. Hermes, diante de tal incumbência, perguntou a Zeus qual seria o critério de distribuição: Distribuí-los-ei como foram distribuídas as demais artes? Pois, estas foram repartidas da seguinte maneira: um só homem com conhecimento da medicina é útil para muitos que a ignoram, assim verifica-se com as demais artes.
Devo proceder da mesma forma ou repartir igualmente o pudor e a justiça entre os homens? Disse-lhe Zeus: Repartirás igualmente para que todos participem deles, pois, se o pudor e a justiça forem privilégios de alguns, de poucos, como se dá com as demais artes, as cidades não subsistirão. Estabeleça também, a seguinte Lei: Que todo
 homem incapaz de pudor de justiça sofrerá pena capital, sendo considerado flagelo da sociedade.
Por este motivo é que todos, inclusive os atenienses, quando se trata de problemas relativos à arte da construção, ou de qualquer outra profissão, poucos podem participar das suas deliberações, não tolerando opinião de estranhos a esse pequeno grupo. Quando, porém, vão deliberar sobre a virtude política, admitem todos os cidadãos, por ser necessidade que todos participem dessa virtude, sem qual nenhuma cidade poderá subsistir.





Referências Bibliográficas
PLATÃO. Diálogos, tradução Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Edições Melhoramento, 1970.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Protágoras - A origem dos mortais

por Osvaldo Duarte



Houve uma época em que só havia deuses, sem a existência de criaturas mortais, mas em um determinado momento o Destino decretou que estas fossem criadas, então, nas entranhas da terra, misturando terra e fogo com os demais elementos que a estes se associam, os deuses as plasmaram. Chegando o tempo de trazê-las à luz, os deuses incumbiram Prometeu e Epimeteu de provê-las do necessário e de darem as qualidades adequadas a cada uma delas.  Epimeteu propôs a Prometeu que deixasse a seu cargo a distribuição, ficando com Prometeu a responsabilidade da revisão final. Com assentimento de Prometeu, Epimeteu começou a executar seu plano. A alguns animais atribuiu força sem velocidade, dotando de velocidade os mais fracos, a outros deu armas; para os que deixara com a natureza desarmada, providenciou diferentes meios de preservação, aplicando sempre o critério de compensação, com vistas a evitar que alguma espécie viesse a extinguir-se.




Depois de providenciado tudo para que não se destruíssem reciprocamente, arranjou meios de protegê-los contra as estações de Zeus, dotando-os de pelos abundantes e pele grossas para suportarem o frio ou adequado para o calor. Determinou ainda a todos eles alimentos variados, de acordo com a constituição de cada um: ervas, frutos das árvores, raízes, e a alguns até mesmo outros animais como alimento, limitando, porém, a capacidade de reprodução daqueles, visando assegurar a preservação das espécies.
Entretanto, Epimeteu carecia de reflexão, despendendo, sem o perceber, todas as qualidades que dispunha, deixando sem beneficiar a geração dos homens, ficando, porém, sem saber o que fazer com ela. No momento da inspeção, Prometeu verificou que todos os animais se achavam devidamente providos de tudo, somente o homem se encontrava nu, sem calçado, sem armas e sem cobertura. Chegado o dia de trazer o homem à luz, não sabendo como assegurar a sua salvação, roubou de Hefesto e de Atena a sabedoria das artes juntamente com o fogo, pois, sem o fogo seria inútil as artes e o seu aprendizado, e as deu aos homens. Assim, o homem veio à luz dotado de conhecimento para a vida, mas sem a sabedoria política, pois, esta se encontrava com Zeus. A ocultas entrou no compartimento em que Atena e Hefesto amavam exercitar suas artes, roubando de Hefesto a arte de trabalhar com o fogo e de Atena o que lhe é próprio e entregou ao homem.

Deste modo, alcançou o homem condições favoráveis à sua sobrevivência. Quanto a Prometeu, consta que foi pertinentemente castigado pelo furto, por culpa de Epimeteu.
Referências Bibliográficas
PLATÃO. Diálogos, tradução Carlos Alberto Nunes, São Paulo, Edições Melhoramento, 1970.