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Pansophia

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terça-feira, 9 de agosto de 2011

Remédio Senequiano

por Osvaldo Duarte


Consolação a Marcia

Sêneca escreve por volta do ano 40 uma carta a Marcia, nobre dama da sociedade romana, com o intuito de demover toda sua tristeza, pois, Marcia está com o coração dilacerado por mais de três anos pela morte de seu filho Metílio.
Embora o conteúdo desta missiva se refira a uma situação particular, Sêneca nos ensina a compreender o homem através de uma visão eminentemente estoica. O pensador nos ajuda não só a encarar a morte, mas também nos auxilia a enfrentar outros problemas, ao que comumente chamamos “lidar com as nossas perdas.”
Pretendemos aqui não abordarmos totalmente a carta, mas tão-somente extrairmos alguns componentes que nos permitam a elaboração do remédio, pois, o remédio natural, o tempo, que, segundo nosso pensador, acalma até mesmo as maiores aflições, muitas vezes perde a força, daí a necessidade de outros lenitivos. Sêneca nos alerta que as feridas são mais facilmente curadas enquanto recentes, pois, assim como os vícios que são radicados profundamente se não tratados enquanto brotam, assim os sentimentos infelizes e miseráveis se alimentam da última amargura tornando a dor do espírito infeliz um prazer vicioso e nos avisa que o tratamento desta dor não poderá ser feito com complacência e nem de modo suave, mas violento.
Logo no início, nosso pensador cita dois exemplos de mães que tiveram a mesma desdita, Otávia e Lívia. Quanto à primeira, assim como Marcia, se entrega totalmente à dor, mas já a segunda, Lívia, esposa do imperador Augusto, que é a que nos interessa aqui, superou a sua desventura com o auxílio do filósofo doméstico Areu, conselheiro do Imperador, ouvindo seus argumentos:
“... Não te voltes para o convívio e para os agradáveis encontros com teu filho, nem para as suas carícias doces e infantis, nem para os progressos dos seus estudos. Tu te apegas àquele último aspecto dos fatos e como se ele, por si próprio, fosse pouco terrível, tu lhe acrescentas o quanto pode de crueldade. Não desejes, eu te suplico, a glória extremamente perversa de ser considerada a mais infeliz mulher! Considera, ao mesmo tempo, que não é grande coisa mostrar-se forte na prosperidade, quando a vida corre um curso tranquilo, nem é por certo um mar tranquilo e um vento favorável que revelam a habilidade de um piloto: é necessário que se verifique alguma adversidade, para que se ponha à prova espírito. Portanto, não te abatas; pelo contrário, opõe-te com passo firme e, seja qual for o peso que tenha caído sobre ti, apenas refeita do primeiro susto, resiste. Com nenhuma coisa se provoca maior despeito da sorte do que  com um espírito sereno.” Após estas palavras mostrou-lhe o filho que restava vivo, mostrou-lhe os netos que lhe dera o filho perdido.
Após narrar o consolo de Areu, Sêneca prossegue:
“... Se a fatalidade pode ser vencida com lágrimas, choremos: que todo dia transcorra em meio à dor; que a tristeza consuma nossa noite de sono; que cravem as mãos no peito dilacerado, que se faça violência à própria face e que uma proveitosa aflição se exercite em todo gênero de crueldade. Mas, se os mortos não são ressuscitados por nenhum pranto, se o destino imutável e eternamente fixo por nenhuma desgraça é alterado. E se a morte mantém consigo tudo o que arrebatou, cesse nossa dor que é inútil.”
Nosso filósofo continua mostrando a inutilidade desta dor que, até mesmo nos espíritos mais fortes há amargura e angústia, pois, o que a imaginação acrescenta é mais do que a natureza impõe:
“Considera quão veementes são os sofrimentos dos mudos animais e, contudo, quão breves: o mugido das vacas é ouvido por um ou dois dias, nem dura muito mais tempo aquele galopar vago e louco das éguas; as feras, depois que seguiram os vestígios dos filhotes e vaguearam pelas selvas e muito mais vezes voltaram para a morada devastada, em pouco tempo acalmam a sua raiva; as aves, depois que com um grande barulho esvoaçaram ao redor dos seus ninhos vazios, em pouco minutos, contudo, recomeçam tranquilas os seus vôos. Nenhum animal chora por longo tempo a perda de seus filhos, a não ser o homem, que permanece ligado à sua dor...”
Sêneca ainda persiste, lembrando que não prevemos nenhum mal antes que ele chegue até nós, como se fôssemos imunes, e que não somos advertidos pelas desgraças alheias, esquecendo-nos que esses males são comuns a todos. Quantos ricos ficaram pobres diante de nossos olhos, esquecendo-nos que os nossos bens estão igualmente em risco. “A qualquer um pode acontecer o que pode acontecer a alguém.” Todas as coisas que nos são exteriores, crianças, honrarias, riquezas, etc., nos são dadas em empréstimo, um dia deverão retornar a seus donos: uns no primeiro dias, outros no segundo dia, poucos permanecem até o fim.
“Frequentemente o espírito deve ser aconselhado para que ame todas as coisas como se estivessem para nos deixar, e até como nos estivessem deixando. Desfrutai com avidez as alegrias que vos podem dar os filhos; permiti, em compensação, que encontrem em vós as alegrias que lhes podeis dar e aproveitai; sem demora, toda a felicidade: nada está assegurado quanto à noite de hoje. (...) Se deploras a morte do seu filho, a culpa é do momento em que nasceu, pois a morte lhe foi anunciada ao nascer. Com esta condição ele te fora dado, este destino o acompanhava desde o teu ventre.”
A esta altura da carta, nosso filósofo define o que é o homem:
“O que é o homem? Um corpo débil e frágil, desnudo, indefeso por sua própria natureza que tem necessidade do auxílio alheio, exposto a todos os danos do destino; um corpo que quando exerceu bem os seus músculos, é pasto a qualquer fera. É vítima de qualquer uma; composto de matéria inconsistente e mole, e brilhante somente nas suas feições exteriores; incapaz de suportar o frio, o calor, a fadiga e, por outro lado, destinado à desagregação pela inércia da ociosidade; um corpo preocupado com seus alimentos, por cuja carência ora se enfraquece, por cujo excesso ora se rompe; um corpo angustiado e inquieto por sua conservação , provido de uma respiração precária e pouco firme, a qual um forte ruído repentino perturba; um corpo é fonte doentia e inútil, de contínuo perigo para si mesmo. (...) Não obstante, quantos tumultos provoca esse desprezível animal, a quão altos pensamentos aspira, esquecido da sua condição! Revolve o espírito no coisas imortais, coisas eternas e faz planos para seus netos e bisnetos, enquanto nele planeja projetos duradouros, a morte o pressiona: e isto que se chama velhice é um período de pouquíssimos anos.”
“É melhor termos uma felicidade ainda que passageira do que nenhuma.”
Vejamos primeiro que mal é preciso ser curado, depois, de que maneira. É a perda daquele que amou que a faz chorar. (...) Na verdade não choramos os ausentes e os que estão ausentes enquanto viverem, ainda que todo o prazer da convivência nos tenha sido arrebatado com a visão deles. A nossa imaginação é, pois, que nos atormenta, e cada mal é tão importante quanto nós o avaliamos. Temos em nós o poder do remédio: consideremos que os mortos estejam ausentes e nos enganemos a nós mesmos. Nós os deixamos partir, ou melhor, nós os enviamos antes para segui-los.
O que é a morte para Sêneca:
“A morte é uma libertação de todas as dores e o término além do qual os nossos males não ultrapassam; ela nos leva de volta àquela tranquilidade, na qual jazíamos antes de nascer. (...) A morte não é um bem nem um mal. Pois só pode ser um bem ou mal aquilo que é alguma coisa, porém, o que é o próprio nada e ao nada se reduz, não influi em nossa sorte: pois coisas são más e boas se exercem sobre algum objeto. O destino não pode dominar aquilo que a natureza abandona, nem pode ser infeliz aquele que não existe.”
Sêneca não só nos dá o remédio estoico, como também, nos fornece uma possibilidade da compreensão e uma reflexão sobre a fragilidade humana perante a vida. Muitas vezes a nossa imaginação pesa sua mão sobre nossos ombros, tornando ainda maior, quase insuportável as adversidades que o destino traçado pelas Moiras nos oferece. Mas devemos aceitar pacientemente nosso fado, sem lamúrias, sem lágrimas, sem reclamação, vivendo conforme a natureza, cumprindo o papel que nos foi dado. Se conseguirmos, seremos felizes, se não, o tempo dirá; afinal, somos humanos, demasiado humanos!

                    “Uma só maneira existe de vivermos muito: se vivermos intensamente.”
Referências Bibliográficas
SÊNECA, Cartas Consolatórias, tradução Cleonice Furtado Mendonça Van Raij, Rio de Janeiro, Pontes, 1992.

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