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Pansophia

Pansophia

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O remédio cartesiano

por Osvaldo Duarte

Descartes, ao que tudo indica parece ter exercido em determinada época o papel muito próximo, ou melhor, uma postura semelhante a do filósofo doméstico como confessor e conselheiro junto à Princesa da Boêmia, por quem nutria uma grande afeição pessoal. Filha do rei Frederico V, da Boêmia, a Princesa Palatina contava com apenas 24 anos quando iniciou as suas correspondências com Descartes a propósito das “Meditações” em 1642. De cultura ímpar, de alto valor intelectual e moral, Elisabeth falava várias línguas- o francês, o inglês, o alemão, o italiano e o flamengo; dedicava-se também, aos estudos da matemática e das demais ciências e da Filosofia.


Ao perceber um espírito tão elevado, nosso Filósofo não hesitou em dedicar-lhe os “Princípios”: “... Jamais encontrei alguém que tenha tão bem, e tão inteiramente, entendido tudo quanto meus escritos contêm.” Certa feita, encontrando-se Elisabeth na Alemanha, incumbiu sua irmã Sofia, de intermediar suas correspondências com Descartes. Como cavalheiro que era, assim dirigiu-se à Sofia: “ Vossa irmã imita a Soberana Divindade, que costuma empregar Anjos para receber as submissões dos homens e fazer chegar até eles as suas ordens.”

Em maio de 1645, sabendo da enfermidade da princesa, que estava sofrendo de uma febre renitente acompanhada de uma tosse seca, Descartes escreveu à Elisabeth expressando seu pesar oferecendo-lhe alguns conselhos, dizendo-lhe: “A causa mais comum da febre renitente é a tristeza.” Para que o remédio não parecesse por demais amargo, amenizou:  “Bem sei que seria imprudente querer convencer alguém a ser feliz, quando o acaso lhe inflige a cada dia novas fontes de pesar; e não sou daqueles filósofos cruéis que desejam que os sábios sejam insensíveis.”
O remédio para a cura da doença da Princesa Palatina era:
“Parece que a diferença entre as grandes almas e as que são vis e comuns consiste, principalmente, no fato de que as almas comuns entregam-se a suas paixões, e só são felizes ou infelizes conforme sejam agradáveis ou desagradáveis as coisas que lhe sucedem; as grandes almas, por outro lado, pensam de um modo tão vigoroso e convincente que, embora também elas tenham paixões, e aliás, paixões amiúde mais violentas que as da gente comum, sua razão sempre se mantém senhora de tudo, e até faz com que seus dissabores lhes sirvam e contribuam para a perfeita felicidade  de que elas gozam nesta vida.”
Elisabeth respondeu ao nosso Filósofo que jamais nenhum médico lhe prescrevera remédio tão salutar. E assim,  prossegue nosso Filósofo:
"Consideremos alguém que tivesse todas as razões para ser feliz, mas assistisse continuamente à encenação de tragédias repletas de acontecimentos desastrosos, e que passasse todo o seu tempo a tecer considerações sobre coisas tristes e dolorosas. Suponhamos que ele soubesse que eram histórias imaginárias, de modo que, conquanto elas lhe arrancassem lágrimas dos olhos e lhe comovessem a imaginação, em nada afetassem seu intelecto. Creio que, por si só, isso já bastaria para fechar paulatinamente o coração e para refazê-lo suspirar de tal maneira, que a circulação do sangue se retardaria e se tornaria mais vagarosa (...). Por outro lado, poderia existir alguém com muitos motivos autênticos de aflição, mas que se empenhasse com tal afinco em controlar a rumo da sua imaginação que jamais pensasse neles, salvo se compelido por uma grande necessidade prática, e que se dedicasse o resto do seu tempo à consideração de coisas capazes de trazer satisfação e alegria. Isso o ajudaria, permitindo-lhe um julgamento mais sensato das coisas importantes, pois ele a examinaria sem paixão. Outrossim, não duvido que, por si só, isso já o lograsse restabelecer-lhe a saúde, ainda que seu baço e seus pulmões se achassem em estado tão precário, em decorrência do mal temperamento de sangue, produzido pela tristeza.” Descartes assim conclui: (...) Mas sempre tive uma inclinação a olhar as coisas pelo ângulo mais favorável e a fazer com que minha felicidade principal dependesse apenas de mim mesmo.”

Créditos
GAUKROGER, S. Descartes Uma biografia intelectual, trad. Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Ed. UERJ, 1999.
DESCARTES, R. Princípios da Filosofia, trad. Torrieri Guimarães, São Paulo, Hemus, 1968.
LINS, I. Descartes época, vida e obra, Rio de Janeiro, Livraria São José, 1964.



segunda-feira, 15 de agosto de 2011

John Locke é um filósofo especista ou não?

por Leandro Morena

John Locke é um filósofo inglês, nascido em 1632 no mesmo ano em que nasceu o filósofo holandês Baruch Espinosa, ele foi representante do empirismo, ideólogo do liberalismo e médico. Dedicou-se a filosofia política. Com uma obra imensa, entre elas Ensaio acerca do Entendimento Humano, a filosofia lockeana apesar de não ter dedicado nenhum título aos animais, existem várias passagens que mostram que o pensador britânico tinha algum interesse nos animais. Mas antes de apresentar o pensamento lockeano para com os animais, tomarei a liberdade para apresentar o que significa o especismo.
O termo especismo foi criado no início da década de 70 do século passado pelo psicólogo e filósofo Richard Ryder (1940- ). Este termo significa que nós (seres humanos) nos preocupamos somente com os seres da nossa espécie, as outras espécies não nos importam e podemos fazer o que bem entender com elas.

Na história da filosofia tiveram pensadores especistas como também aqueles que defendiam as outras espécies. Na Grécia antiga já se discutia a questão dos animais. Filósofos de prestígio como Platão e Aristóteles discutiam esse assunto, e nos seus pensamentos colocou-se o homem como o ser supremo na natureza. Aristóteles não negava que o homem é um animal, mas a diferença dele com as outras espécies é que o homem é um animal racional. Na Idade Média que vigorava o Teocentrismo (Deus como o centro do universo), os pensadores daquela época afirmavam que o homem foi feito à imagem de Deus e por esse motivo as outras espécies foram criadas somente para servi-lo.

São Tomás de Aquino (1225-1274) fez a separação do homem com os animais e afirmava que o animal agia como um relógio, tese esta que seria utilizada por Descartes (1596-1650). Na filosofia Moderna esse conceito da superioridade do homem com as demais espécies não mudou muito. O Teocentrismo deu lugar ao Antropocentrismo e o homem passou a ser o centro do universo e, consequentemente, veio à tona a singularidade da vida humana. O homem como o ser mais perfeito e sábio que há na natureza.

Vale lembrar que nessa época filósofos contemporâneos a Locke como Descartes e Espinosa colocaram um grande abismo entre os homens com as demais espécies. Na obra o Discurso do Método, o mecanicismo cartesiano afirma que o corpo humano e dos demais animais agem como uma máquina, mas diferentemente do homem que tem a capacidade da linguagem e da razão e por isso é constituído por uma alma imortal, os animais, por não possuírem essa tal capacidade não possuem uma alma imortal e por não possuí-la não sentem dor, prazer, etc., em suma, agem simplesmente como uma máquina fria. Se cortarmos um gato o seu grito não é dor e sim um som de uma máquina.
 Descartes, afirma que os animais se comparam com um relógio e que a diferença entre eles é que os animais são máquinas mais sofisticadas do que um relógio, pois foram criados por Deus, enquanto o relógio foi criado pelo homem. O obscurantismo da teoria mecanicista teve aceitação por muitos outros pensadores.  Já o filósofo Espinosa na sua obra a Ética, afirma que o homem tem que se preocupar somente com os da sua espécie e poderíamos fazer o que quisermos com as outras espécies, e ele vai além, afirma que não temos que sentir dó se os animais são submetidos a maus tratos, pois os que defendem os animais estão baseados numa superstição. Ele não negava que os animais sentiam, mas que esse “sentir” seria completamente diferente dos seres humanos, ou seja, a ética espinosana piora ainda mais o conceito filosófico dos animais, simplesmente a definição de especismo vista acima.


Depois desse breve resumo gostaria de colocar a questão sobre o especismo ou não em Locke. Numa de suas passagens, ele afirma que alguns homens são capazes de vender seus filhos e matar seus idosos, prática essa que não aconteceria com as outras espécies, pois os animais lutariam e morreriam para defender seus filhotes. Locke era ao contrário do mecanicismo e acreditava que os animais possuíssem a capacidade de raciocinar. 

 O filósofo empirista explica qual é a diferença dos animais com o relógio, e diferentemente de Descartes, ele afirma que nos animais a adequação da organização e do movimento é gerado no interior deles e no caso do relógio, o movimento é gerado no exterior.  Em outra passagem, Locke afirma que o movimento de um beija-flor não passa de um puro movimento mecânico, mas não acredita que esse movimento teria uma causa mecânica, vale à pena transcrever essa passagem. A saber:


                     Pois embora eu admita que o som  pode causar mecanicamente um certo movimento nos      espíritos animais, nos cérebros desses pássaros, enquanto a melodia está sendo realmente tocada; e esse movimento pode ter continuidade nos músculos das asas, e assim o pássaro ser mecanicamente afugentado por certos ruídos, porque isso pode ser favorável à preservação do pássaro: entretanto, isso não pode ser admitido como razão que explique por que, enquanto a melodia estava sendo tocada, e muito menos depois que ela cessou, o movimento nos órgãos vocais do pássaro teria uma causa mecânica em conformidade com as notas de um som estranho, cuja imitação não pode ter a menor utilidade para a preservação da ave (Yolton, 1996, p.35).

Locke nunca negou a capacidade que os animais têm de raciocinar. Este raciocínio é feito através de ideias particulares. Segundo Yolton, um exemplo que Locke apresenta para tornar verdadeira a sua afirmação de que os animais pensam, é o esforço dos pássaros que aprendem melodias para alcançar um timbre desejado, pois eles têm percepção e retêm idéias em sua memória. Segundo Feijó, Locke afirma que a percepção é encontrada num certo grau em cada classe de animais, sendo que em muitos animais a recepção de sensação é bastante limitada. Locke cita o exemplo da ostra que não tem a mesma viveza de sentidos que um homem ou outro animal mais sofisticado, pois em nada adiantaria tê-la, pois a capacidade de locomoção não existe nesse animal. Segundo Feijó, esse exemplo da ostra mostra que existe apenas alguma fraca percepção que o distingue da insensibilidade absoluta. Mas essa situação vivida pela ostra pode também ser vivida pelo homem, segundo o filósofo, a velhice ou a perda total de algum dos sentidos coloca-o no mesmo patamar da ostra.
O leitor pode se perguntar: Por que esse título: se é especista ou não? Pois ele mostrou-se preocupado com os animais, e jamais poderíamos colocá-lo como especista?  Descreverei algumas passagens de Locke que pode colocá-lo como um filósofo especista.  Ele afirmava sua irritação ao observar às crianças judiando dos animais, o pensador afirmava que as mães tinham que educar aos seus filhos para que estes passem a respeitar mais os animais, não os maltratando e nem os deixando sem comida e água. Locke chegou a afirmar que às crianças que judiam dos animais, futuramente serão seres humanos de mau caráter. Vemos aqui, que a preocupação de Locke com as crianças que judiam dos animais, está no âmbito que essas mesmas crianças ao alcançar a vida adulta serão pessoas que trarão problemas para a sociedade humana, ou seja, é inaceitável isso para o bem do homem, nitidamente nota-se que a preocupação não é com os animais. Por algumas vezes ele colocou os animais no mesmo patamar dos homens equiparando-os. Quando Locke fez críticas aos fanáticos religiosos ele compara os ignorantes aos animais, mostrando o seu reducionismo antropocêntrico especista. A saber:

  Assim sendo, com efeito, a religião, que mais nos deveria distinguir das bestas, e deveria mais particularmente nos elevar, como criaturas racionais, acima dos brutos, consiste nisso, ou seja, os homens frequentemente, através delas, parecem mais irracionais e mais insensíveis do que as próprias bestas. (...) não causa surpresa que algumas de nossas funções mentais sejam compartilhadas com alguns animais. (Yolton, 1996, p.34).

Noutra passagem, segundo Yolton, Locke fala de um homicida que perde a razão e mata outro homem, este homicida não merece viver mais entre as pessoas de bem e deve ser destruído como um leão, pois jamais um homem poderá conviver e ter segurança ao lado de um leão. Aqui Locke coloca uma negatividade tremenda na imagem dos animais como a própria escolástica colocou, pois tudo que se é de errado no ser humano é comparado aos animais, ou seja, um homicida seria uma fera, sem dó, sem piedade e sem sentimentos e mataria como as bestas. Locke era um grande leitor da bíblia e ele afirmava o que a própria bíblia afirma e a filosofia escolástica afirmou por quase 15 séculos: “Os animais são criados por Deus somente para servir aos seres humanos, pois o homem tem o direito de usar os animais como bem entender, afim da preservação da espécie humana”.
Visto às afirmações acima, acredito que John Locke apesar da sua preocupação para com os animais, ele acabou aderindo a esses aspectos funestos do especismo reducionista do pensamento moderno, por isso posso, sem constrangimento, alcunhá-lo como sendo um filósofo especista.

 Referências Bibliográficas

DESCARTES, René. Discurso do Método. Os Pensadores. 2.ed. Tradução: J.Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo, Abril Cultural, 1979.
 ESPINOSA, Baruch. A Ética. Os Pensadores. 2.ed. Tradução: Antõnio Simões. São
Paulo, Abril Cultural, 1979.
 FEIJÓ, Anamaria. Utilização de animais na investigação e docência. Porto Alegre,
EDIPUCRS, 2005.
LOCKE, John. Ensaio acerca do Entendimento Humano. Os Pensadores. 2 ed. Tradução:Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. São Paulo, Abril cultural, 1978.
 YOLTON, John W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996.
 Figura 1: Disponível em:
Acesso em 09. Jul. 2011
Figura 2: Disponível em:
Acesso: 12. Jul. 2010
Figura 3: Disponível em:
Acesso em: 10. Jul. 2011
Figura 4 e 6: Disponível em:
 Acesso em: 09. Jul. 2011
 Figura 5: Disponível em:
 Acesso em: 10. Jul. 2011




terça-feira, 9 de agosto de 2011

Remédio Senequiano

por Osvaldo Duarte


Consolação a Marcia

Sêneca escreve por volta do ano 40 uma carta a Marcia, nobre dama da sociedade romana, com o intuito de demover toda sua tristeza, pois, Marcia está com o coração dilacerado por mais de três anos pela morte de seu filho Metílio.
Embora o conteúdo desta missiva se refira a uma situação particular, Sêneca nos ensina a compreender o homem através de uma visão eminentemente estoica. O pensador nos ajuda não só a encarar a morte, mas também nos auxilia a enfrentar outros problemas, ao que comumente chamamos “lidar com as nossas perdas.”
Pretendemos aqui não abordarmos totalmente a carta, mas tão-somente extrairmos alguns componentes que nos permitam a elaboração do remédio, pois, o remédio natural, o tempo, que, segundo nosso pensador, acalma até mesmo as maiores aflições, muitas vezes perde a força, daí a necessidade de outros lenitivos. Sêneca nos alerta que as feridas são mais facilmente curadas enquanto recentes, pois, assim como os vícios que são radicados profundamente se não tratados enquanto brotam, assim os sentimentos infelizes e miseráveis se alimentam da última amargura tornando a dor do espírito infeliz um prazer vicioso e nos avisa que o tratamento desta dor não poderá ser feito com complacência e nem de modo suave, mas violento.
Logo no início, nosso pensador cita dois exemplos de mães que tiveram a mesma desdita, Otávia e Lívia. Quanto à primeira, assim como Marcia, se entrega totalmente à dor, mas já a segunda, Lívia, esposa do imperador Augusto, que é a que nos interessa aqui, superou a sua desventura com o auxílio do filósofo doméstico Areu, conselheiro do Imperador, ouvindo seus argumentos:
“... Não te voltes para o convívio e para os agradáveis encontros com teu filho, nem para as suas carícias doces e infantis, nem para os progressos dos seus estudos. Tu te apegas àquele último aspecto dos fatos e como se ele, por si próprio, fosse pouco terrível, tu lhe acrescentas o quanto pode de crueldade. Não desejes, eu te suplico, a glória extremamente perversa de ser considerada a mais infeliz mulher! Considera, ao mesmo tempo, que não é grande coisa mostrar-se forte na prosperidade, quando a vida corre um curso tranquilo, nem é por certo um mar tranquilo e um vento favorável que revelam a habilidade de um piloto: é necessário que se verifique alguma adversidade, para que se ponha à prova espírito. Portanto, não te abatas; pelo contrário, opõe-te com passo firme e, seja qual for o peso que tenha caído sobre ti, apenas refeita do primeiro susto, resiste. Com nenhuma coisa se provoca maior despeito da sorte do que  com um espírito sereno.” Após estas palavras mostrou-lhe o filho que restava vivo, mostrou-lhe os netos que lhe dera o filho perdido.
Após narrar o consolo de Areu, Sêneca prossegue:
“... Se a fatalidade pode ser vencida com lágrimas, choremos: que todo dia transcorra em meio à dor; que a tristeza consuma nossa noite de sono; que cravem as mãos no peito dilacerado, que se faça violência à própria face e que uma proveitosa aflição se exercite em todo gênero de crueldade. Mas, se os mortos não são ressuscitados por nenhum pranto, se o destino imutável e eternamente fixo por nenhuma desgraça é alterado. E se a morte mantém consigo tudo o que arrebatou, cesse nossa dor que é inútil.”
Nosso filósofo continua mostrando a inutilidade desta dor que, até mesmo nos espíritos mais fortes há amargura e angústia, pois, o que a imaginação acrescenta é mais do que a natureza impõe:
“Considera quão veementes são os sofrimentos dos mudos animais e, contudo, quão breves: o mugido das vacas é ouvido por um ou dois dias, nem dura muito mais tempo aquele galopar vago e louco das éguas; as feras, depois que seguiram os vestígios dos filhotes e vaguearam pelas selvas e muito mais vezes voltaram para a morada devastada, em pouco tempo acalmam a sua raiva; as aves, depois que com um grande barulho esvoaçaram ao redor dos seus ninhos vazios, em pouco minutos, contudo, recomeçam tranquilas os seus vôos. Nenhum animal chora por longo tempo a perda de seus filhos, a não ser o homem, que permanece ligado à sua dor...”
Sêneca ainda persiste, lembrando que não prevemos nenhum mal antes que ele chegue até nós, como se fôssemos imunes, e que não somos advertidos pelas desgraças alheias, esquecendo-nos que esses males são comuns a todos. Quantos ricos ficaram pobres diante de nossos olhos, esquecendo-nos que os nossos bens estão igualmente em risco. “A qualquer um pode acontecer o que pode acontecer a alguém.” Todas as coisas que nos são exteriores, crianças, honrarias, riquezas, etc., nos são dadas em empréstimo, um dia deverão retornar a seus donos: uns no primeiro dias, outros no segundo dia, poucos permanecem até o fim.
“Frequentemente o espírito deve ser aconselhado para que ame todas as coisas como se estivessem para nos deixar, e até como nos estivessem deixando. Desfrutai com avidez as alegrias que vos podem dar os filhos; permiti, em compensação, que encontrem em vós as alegrias que lhes podeis dar e aproveitai; sem demora, toda a felicidade: nada está assegurado quanto à noite de hoje. (...) Se deploras a morte do seu filho, a culpa é do momento em que nasceu, pois a morte lhe foi anunciada ao nascer. Com esta condição ele te fora dado, este destino o acompanhava desde o teu ventre.”
A esta altura da carta, nosso filósofo define o que é o homem:
“O que é o homem? Um corpo débil e frágil, desnudo, indefeso por sua própria natureza que tem necessidade do auxílio alheio, exposto a todos os danos do destino; um corpo que quando exerceu bem os seus músculos, é pasto a qualquer fera. É vítima de qualquer uma; composto de matéria inconsistente e mole, e brilhante somente nas suas feições exteriores; incapaz de suportar o frio, o calor, a fadiga e, por outro lado, destinado à desagregação pela inércia da ociosidade; um corpo preocupado com seus alimentos, por cuja carência ora se enfraquece, por cujo excesso ora se rompe; um corpo angustiado e inquieto por sua conservação , provido de uma respiração precária e pouco firme, a qual um forte ruído repentino perturba; um corpo é fonte doentia e inútil, de contínuo perigo para si mesmo. (...) Não obstante, quantos tumultos provoca esse desprezível animal, a quão altos pensamentos aspira, esquecido da sua condição! Revolve o espírito no coisas imortais, coisas eternas e faz planos para seus netos e bisnetos, enquanto nele planeja projetos duradouros, a morte o pressiona: e isto que se chama velhice é um período de pouquíssimos anos.”
“É melhor termos uma felicidade ainda que passageira do que nenhuma.”
Vejamos primeiro que mal é preciso ser curado, depois, de que maneira. É a perda daquele que amou que a faz chorar. (...) Na verdade não choramos os ausentes e os que estão ausentes enquanto viverem, ainda que todo o prazer da convivência nos tenha sido arrebatado com a visão deles. A nossa imaginação é, pois, que nos atormenta, e cada mal é tão importante quanto nós o avaliamos. Temos em nós o poder do remédio: consideremos que os mortos estejam ausentes e nos enganemos a nós mesmos. Nós os deixamos partir, ou melhor, nós os enviamos antes para segui-los.
O que é a morte para Sêneca:
“A morte é uma libertação de todas as dores e o término além do qual os nossos males não ultrapassam; ela nos leva de volta àquela tranquilidade, na qual jazíamos antes de nascer. (...) A morte não é um bem nem um mal. Pois só pode ser um bem ou mal aquilo que é alguma coisa, porém, o que é o próprio nada e ao nada se reduz, não influi em nossa sorte: pois coisas são más e boas se exercem sobre algum objeto. O destino não pode dominar aquilo que a natureza abandona, nem pode ser infeliz aquele que não existe.”
Sêneca não só nos dá o remédio estoico, como também, nos fornece uma possibilidade da compreensão e uma reflexão sobre a fragilidade humana perante a vida. Muitas vezes a nossa imaginação pesa sua mão sobre nossos ombros, tornando ainda maior, quase insuportável as adversidades que o destino traçado pelas Moiras nos oferece. Mas devemos aceitar pacientemente nosso fado, sem lamúrias, sem lágrimas, sem reclamação, vivendo conforme a natureza, cumprindo o papel que nos foi dado. Se conseguirmos, seremos felizes, se não, o tempo dirá; afinal, somos humanos, demasiado humanos!

                    “Uma só maneira existe de vivermos muito: se vivermos intensamente.”
Referências Bibliográficas
SÊNECA, Cartas Consolatórias, tradução Cleonice Furtado Mendonça Van Raij, Rio de Janeiro, Pontes, 1992.