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Pansophia

Pansophia

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Contra os Gregos – Taciano


por Osvaldo Duarte

Taciano, o assírio, nasceu por volta do ano 120 e morreu possivelmente no ano 180. Sua educação foi eminentemente grega, da qual conservou em sua vida o gosto literário. Após ter viajado muito e ter-se iniciado em vários mistérios, estudado várias disciplinas inclusive a filosofia, converteu-se ao cristianismo, pois somente os escritos dos hebreus o satisfizeram.  Em Roma conheceu Justino, o mártir, tornando-se seu discípulo. Seu mestre exerceu profunda influência  em seu pensamento; a moralidade severa, o caráter monoteísta que afasta do dogma da criação as curiosidades físicas e metafísicas, encontra aí o seu espírito tacanho terreno fértil para suas obras. O Discurso contra os Gregos é considerado sua obra principal, composto provavelmente entre os anos 166 e 171, que segundo Gilson, é uma declaração dos direitos dos bárbaros, isto é, dos cristãos e do cristianismo, contra os helenos e sua cultura. Sua crítica não traz nada de original, já encontramos em Justino, Josefo e Fílon, argumentos análogos. Num sentimento anti-helênico, afirma que os gregos tomaram da Bíblia várias de suas ideias filosóficas e que nunca intentaram nada, nem mesmo a filosofia.
 
“Creio agora oportuno demonstrar-vos que a nossa filosofia é mais antiga do que as instituições gregas (...). Concedamos que Homero tenha vivido, não após a guerra de Tróia, mas no próprio tempo da guerra e que até tenha combatido no exército de Agamenon e que, se alguém se compraz com isso, tenha nascido antes da invenção do alfabeto. Ficará claro que o dito Moisés é, em muitos anos, mais antigo que a tomada de Tróia, muito anterior à fundação da cidade, a Tros e a Dárdano.”
 
Com a morte de Justino, Taciano permaneceu ainda muitos anos em Roma, continuando a escola de seu mestre, mas afastando-se cada vez mais de suas ideias. Considerava os deuses como personificação da imoralidade; causava-lhe verdadeiro horror as estátuas gregas em Roma, que foram erguidas, segundo ele, em honra aos homens e mulheres que foram criaturas de má nota. Desejava ver destruídas as obras de Eurípides e Menandro, pois foram mestres do deboche.

 
Taciano procura erguer sobre as ruínas da Filosofia grega o edifício do cristianismo; ainda por ter vasta erudição helênica, misturava arbitrariamente os escritos autênticos e apócrifos. Com seu espírito sombrio, violento e furioso contra a Filosofia e a civilização grega, deixava claro a sua opção pelo que chamava filosofia bárbara. Josefo, espírito do mesmo jaez, na as obra Contra Apião, afirmava que Moisés é mais antigo que Homero; nada inventaram os gregos, tudo aprenderam com outros povos, especialmente os orientais. Foram famosos apenas na arte da escrita, suas ideias eram de pouca profundidade, portanto, inferiores às ideias dos outros povos.
Para Taciano a Filosofia grega não melhorou o mundo e, nem mesmo, soube evitar os maiores crimes dos seus adeptos, pois todos eles tiveram seus vícios: Platão um gastrônomo, Aristóteles servil, Diógenes um intemperante; eram cegos a discursar com surdos. Os filósofos gregos não se entendiam, suas opiniões divergiam entre si, já no cristianismo todos professavam as mesmas opiniões: ricos, pobres, homens e mulheres. Tão longe levou suas ideias que chegou a substituir o vinho pela água no sacramento eucaristia um dos rituais tão caro aos cristãos.

(...) Diógenes, com a bravata do seu barril, ostentava a sua independência, depois comeu um polvo cru e, atacado por cólicas, morreu de intemperança; Arístipo, passeando com o seu manto de púrpura, entregava-se à dissolução mantendo a aparência de gravidade; Platão, com toda a sua filosofia foi vendido por Dionísio por causa da sua glutonaria. Aristóteles, que nesciamente estabeleceu limites para a providência e definiu felicidade pelas coisas que ele gostava, agradava depressa o rapaz louco Alexandre (...). Não posso aprovar Heráclito, quando diz: “Eu ensinava a mim mesmo”, por ser autodidata e também soberbo. (...) Também se deve rejeitar Zenão, quando ele afirma que por meio da conflagração universal os mesmo homens ressuscitarão para as mesmas ações (...). Quanto à charlatanice de Empédocles, as erupções da Sicília demonstraram que, não sendo deus, ele mentia dizendo que era.
Não vos deixei, portanto, arrastar por esses bandos de pessoas que gostam mais do barulho do que do saber e que dogmatizam coisas contraditórias, cada um dizendo o que lhe vem à boca. São muitos os choques que acontecem entre eles, pois um odeia o outro, criando doutrinas opostas por pura fanfarronice, desejando postos eminentes. 

 
Nem mesmo a astrologia escapou à sua crítica voraz.

O objeto de perversão deles são os homens, pois, mostrando-lhes, como os jogadores de dados, uma tábua com a descrição da posição dos astros, introduziram o destino (...). Dessa forma, o colérico e o sofrido, o temperante e o intemperante, o pobre e o rico dependem dos demônios que estabeleceram a lei do seu horóscopo. Com feito, a configuração do círculo do Zodíaco é obra de seus deuses e a luz de um deles, quando predomina, triunfa sobre todos os outros, embora aquele que agora foi derrotado costume, mais adiante vencer.

O destino, às vezes irônico, deu a Taciano a morte como herege, mostrando que tanto a Filosofia grega e o cristianismo têm suas cisões partidárias.  O que o perdeu foi seu desejo de ser único.




Créditos
RENAN, E., Marco-Aurélio e o fim do mudo antigo. Porto: Lélo e Irmão, Ltda, 1925.
RENAN, E., Histórias da origem do cristianismo. Porto: Lélo e Irmão, Ltda, 1929.
GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 2007.
PADRES APOLOGISTAS, Tr. I. Storniolo e E. M. Blancin. Patrística, São Paulo: Paulus, 2005.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O Ofício do Filósofo

por Osvaldo Duarte


Em Teeteto, Platão nos dá a definição do ofício do Filósofo; pretendemos aqui reproduzir apenas alguns excertos.


Sócrates, que se julga incapaz de produzir saberes, tem como ofício o que se assemelha ao ofício da sua mãe Fenárete, a mais famosa e hábil das parteiras, sendo   este ofício, por culpa de Ártemis, segundo dizem, não podendo gerar filhos tornou-se protetora dos nascimentos e não deu este trabalho de parteira às mulheres estéreis, dada a sua falta de experiência, atribuindo, portanto, este ofício àquelas mulheres incapazes pela idade, de gerar filhos, honrando a semelhança consigo. O atributo da arte de Sócrates (maiêutica) é dar à luz umas vezes, fantasias, outras o que é real, não sendo fácil tarefa diagnosticar, isto é, distinguir o real do irreal, aparência da realidade; sendo que difere daquela das parteiras pelo fato de que são os homens a dar à luz e não mulheres, e ainda, seu ofício é cuidar das almas e não dos corpos que estão a parir. O mais importante da sua arte é poder verificar completamente o fruto do pensamento do jovem, isto é, se pariu uma fantasia ou mentira, ou ainda, se gerou uma autêntica verdade. Sendo muito criticado por não produzir saberes, mas sempre perguntando aos outros enquanto ele próprio não presta declarações sobre nada, alegando que não ter nada de sábio, Sócrates concorda, e atribui a sua esterilidade, tendo como causa disso o deus que o obriga a fazer nascer, impedindo-o de produzir algo próprio, alega ainda que não houve nenhuma descoberta que tenha vindo dele, nascida de sua alma, mas já aos que junto dele convive o deus permite, descobrindo por si próprios, dando à luz muitas coisas belas, não aprendendo nada com ele, sendo ele juntamente com o deus a causa do parto. Aos que se afastam do convívio antes do tempo, isto é, mais cedo do que deviam, abortam as coisas que ainda restavam por causa das más companhias e, alimentando-se mal, destruindo as coisas que ele tinha feito nascer, preferindo as fantasias e mentiras à verdade, tornando-se ignorantes tanto a si próprios, como aos outros. O gênio que o assiste, muitas vezes o impede de se juntar a uns e, a outros permite, estes por sua vez começam a melhorar. Aos que dele se associam, sofrem dores iguais às mulheres que estão a dar à luz, ficam com dificuldades durante noites e dias, mas sua arte tem o poder de provocar a dor e também de fazer cessá-la; fugirão de si mesmos em direção à Filosofia, a fim de se tornarem diferentes e se afastarem daqueles que eram antes.  Aos que não estão de todo prenhes, sabendo que não precisam dele, Sócrates adivinha de quem se beneficiariam sendo companheiros, oferecendo-os a outros sábios e inspirados.


O Filósofo não está preocupado onde fica o Senado ou qualquer lugar comum da cidade; não ouve e nem vê as leis e decretos, o empenho das uniões partidárias, reuniões, festas e jantares, aliás, nem passa pela sua cabeça se dedicar a estas atividades. O filósofo nada sabe, nem sequer sabe que não sabe todas estas coisas, pois, apenas seu corpo está na cidade e aí reside, enquanto seu pensamento, que considera isso de pouca ou nenhuma importância, o desdenha de todas as maneiras. O filosofo observa os astros, explorando por todo lado toda a natureza, no todo de cada uma das coisas, não se importando com aquilo que está perto. Assim como Tales, que caiu num poço quando observava os astros, tinha ânsia em conhecer as coisas do céu, deixando escapar o que tinha à frente. Quem se dedica à Filosofia desconhece seu vizinho, se é mesmo homem ou qualquer criatura, sua preocupação é saber o que é o homem e o que deve fazer ou sofrer uma natureza desse gênero, diferente das outras, isso é o que se preocupa em explorar. Quando diante de um tribunal ou noutro lugar qualquer, sendo forçado a discutir sobre o que está à sua frente, provoca risos em toda multidão, pois cada dificuldade é um poço que cai devido à sua inexperiência. Quando o insultam, nada tem a censurar a ninguém, visto não estar preocupado com isso; quando elogiado por um tirano ou rei, pensa que está ouvindo elogio de um guardador de rebanho, porqueiro ou pastor, contente por os animais estarem a dar muito leite, pensando que o rei ou tirano pastam ou mugem, sendo forçoso que cresçam. Quando ouve dizer que alguém possui muitas terras, pensa que ouve uma quantidade muito pequena, pois pensa que está habituado a ver a terra inteira. Se alguém celebra sua linhagem de ricos, ele acha este louvor uma estupidez acompanhada da visão limitada, de alguém incapaz pela falta de educação, calcular que já teve milhares de antepassados, tendo havido entre eles ricos, pedintes, reis, escravos, bárbaros, gregos. Em todas as ocasiões é escarnecido pela multidão por parecer arrogante e, por outro lado, ignorante das coisas que têm ao seu pé, atrapalhando-se em situações concretas. O filósofo cresce com tempo livre e em liberdade.

Créditos
PLATÃO, Teeteto, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010. (Tradução de Adriana M. Nogueira e Marcelo Boeri, com Prefácio de José Trindade Santos.)


quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Alegoria da Caverna

Sombra e luz em Platão – A Leitura de Lebrun


por Osvaldo Duarte
Em um dos discursos mais conhecidos de Platão - “A Alegoria da caverna”, mestre Lebrun examina o significado de iluminação, isto é, saída das trevas; para tal empresa divide aquela história em quatro episódios:
I) Os prisioneiros, acorrentados, imobilizados, não podendo mover a cabeça, observam o desfile de marionetes através das sombras projetadas na parede. Eles tomam por seres verdadeiros estas marionetes e creem ouvi-las falar, quando na verdade são as vozes dos carregadores.
II) Um dos cativos é liberto e fica deslumbrado pela luz do fogo, é forçado a olhar as marionetes que passam por cima do muro.
III) Retirado do antro fica cegado pela luz sendo incapaz de observar os seres reais. Aos poucos seus olhos vão se acostumando, observa então, as sombras e os reflexos, depois os próprios seres que projetam estas sombras.
IV) Seu olhar eleva-se em direção ao Sol. Conclui que esse produz a vida e as estações, que é a “causa” de tudo que ele via quando estava preso na caverna - para onde é forçado a retornar.
A caverna significa uma educação (paideía), para os prisioneiros as sombras são as próprias coisas e a luz da fogueira não é percebida como luz artificial. Somente quando liberto, vê as marionetes iluminadas pela luz da fogueira e consegue distinguir a sombra da realidade; mas está ainda longe de conhecer a verdade. Como ainda não vê os carregadores que passam embaixo do muro, ignora que as marionetes são apenas imagens de homens e de animais manipuladas por operadores não discernindo aparência da realidade. Somente ao sair da caverna é que poderá ver o que se passava do outro lado do muro, passando a distinguir as imagens dos seres vivos dos próprios seres vivos, travando conhecimento. Neste processo o liberto fica deslumbrado pelo fluxo de luz, durante certo tempo contemplará as sombras e os reflexos das coisas sensíveis, mas ainda confundirá o que chamamos de “coisas reais” com as suas imagens. No IV episódio ele verá o Sol de frente, mas ainda não será o fim da aventura.
Não é apenas pelo fato de ver o Sol que o torna superior aos demais cativos, mas porque compreende que é o Sol que garante a existência do mundo e de todos os seres vivos, dos artefatos, do fogo que acende e das sombras projetadas. É nesse momento que ele, enfim, tomou consciência de toda situação e pôde figura-la. Nesse instante a luz o inunda, pois não há mais nenhuma confusão entre aparência e realidade. Lebrun lembra que ao longo desta viagem em direção ao Sol, o liberto precisou distinguir a própria coisa daquilo que ele acreditava ser a própria coisa na etapa precedente.  Assim, continua Lebrun, cada experiência contém autocrítica da experiência anterior.
 Mas o que é a saída das trevas? Para Lebrun, a iluminação significa não uma simples ignorância, mas a ingenuidade, o que segundo ele, é completamente diversa. Platão percebe a dificuldade em dissociar a aparência da realidade, a imagem do seu original. Para Lebrun a questão não é que os homens tenham de se relacionar com as imagens: é que não sabem bem o que são imagens. A razão desta cegueira continua Lebrun, é mais simples e mais profunda, pois os homens ainda não pensam por meio da separação “aparência/realidade”, tendo de certo modo razão, pois, na vida diária a aparência não é oposta à realidade. Isso é bom, o viver sem a desconfiança de que não sabem ser a aparência, e que essa ingenuidade jamais seja completamente dissipada. Aquele que desconfiasse de que o aparecer não é senão a aparência, jamais de apaixonaria ou então seria eternamente presa ao ciúme. Essa ignorância relativa a nosso lugar é indispensável à vida.
É justamente esta ignorância que é dissipada pela luz platônica. O prisioneiro é arrancado do seu estado de inconsciência. Ele ignorava que vivia acorrentado em um antro, não tinha a menor ideia de que seu “saber” era um falso saber. Daí a resistência, a má vontade quando é constrangido a aproximar-se das marionetes e é obrigado a dizer o que é (quando é submetido ao exame dialético). A formação que lhe é imposta, não o obriga apenas em perceber as paisagens, mas também em fazer com que visite um domínio desconhecido. O importante é que o lugar em que outrora vivia, agora é completamente outro. Quando retornar o viajante não será mais o mesmo, seus antigos companheiros não o “reconhecerão”.

A ignorância que nos faz envergonhar é muito específica: cegueira acrescida de estupidez. A esta ignorância, Lebrun usa a palavra grega amathía: nada saber e crer que sabe. Para sair desta amathía é preciso “virar a cabeça”,“violentar-se”, deixar que o educador use de violência. Não basta apenas convida-los a observar melhor: é preciso obrigar aqueles que são capazes (estes não muitos) a olhar alhures.
 
Créditos
LEBRUN, G. A Filosofia e sua História, Cosacnaify, 2006.