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Pansophia

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terça-feira, 12 de maio de 2020

Crítica Merleau-Pontiana ao Pensamento Clássico

por Leandro Morena 


No final do ano de 1948, na Rádio Nacional Francesa, o filósofo francês  Merleau-Ponty (1908-1961) faz uma conferência discorrendo por vários temas. O tema que será abordado aqui é: Animalidade.                             

No tema animalidade, o filósofo chama a atenção para o processo antagônico  entre os pensamentos Clássico e o Contemporâneo. Segundo Merleau-Ponty, reaprendermos ver o mundo atual de outra maneira do qual a sociedade desviou-se no passado. Ele afirma que aquele mundo do Pensamento Clássico em que o homem (sadio e perfeito) foi posto como o exemplo unanime de perfeição, mostra-nos que na filosofia e na arte contemporânea começou-se dar mais ênfase para as outras classes deixadas de lado durante os séculos. A crítica merleau-pontiana afirma que essas classes referem-se ao animal, a criança, ao doente/louco e ao primitivo/selvagem. Caro leitor, eu peço à liberdade, e ao mesmo tempo, atrevo-me colocar mais duas classes não citadas por Merleau-Ponty, não para expor que ele não colocara por esquecer-se ou por não acreditar, mas pelo fato do presente artigo não esquecer de que essas duas categorias não passem despercebidas, e ao mesmo tempo, complementar o meu pensamento no artigo. A meu ver, as outras duas categorias são: a mulher e as pessoas com deficiências anômalas.

Antes de continuar com a crítica de Merleau-Ponty, discorremos um pouco na historicidade para observar como a figura do homem (sadio e perfeito) chegara ao ápice. 

 

Na teogonia hesiódica, na Grécia Antiga , Zeus era considerado o deus dos deuses.

“...um palácio com um impiedoso coração, o troante Treme-terra e o sábio Zeus, pai dos deuses e do homem sob cujo trovão  até a ampla terra se abala.” 

                                                                                                                                                                      Nessa época, a figura masculina tivera um endeusamento, fortalecendo-a como a figura principal. 

 

No livro da gênesis Deus fez o homem do pó/argila, depois com o sopro fez os animais  e da costela do homem fez-se a mulher, ou seja, com o resto da figura do sexo masculino fê-la a do feminino. O homem fora feito à imagem e a semelhança do Criador, induzindo-nos a crer que a figura do Criador é do sexo masculino. A figura masculina é alcunhada de Adão e do feminino de Eva. Considerados os primeiros humanos criados por Deus. Ao depararam-se com a árvore que continha o fruto proibido, este proibido pela divindade suprema que o ingerisse, diz a lenda que Eva ao deparar-se com uma serpente, esta o mal encarnado, enrolada sobre a árvore. A serpente começou tentar  Eva para que desobedecesse Deus e ingerisse o fruto; e foi o que aconteceu; além disso ela ofereceu o fruto a Adão que o ingeriu também. Dar-se-ia o pecado original. O sexo feminino não foi forte o suficiente para negar o fruto, desobedeceu, pecou e foi castigado. Eva foi precursora de que a figura feminina sofresse por todas as gerações futuras. Ao ter filhos, a mulher sofreria sempre com dores no parto. Já o sexo masculino tentou ser forte, mas fora ludibriado por Eva, entende-se que ele não foi o gerador do pecado original colocando a mulher como figura fraca e com a culpabilidade. Adão foi castigado e culpou Eva e a serpente por isso. Aqui fica bem evidente que houve um reducionismo na figura feminina e na figura do animal perante o homem.

Com o advento do cristianismo, tornando-se a religião oficial do Império Romano, o filósofo Santo Agostinho (354-430), no livro “A cidade de Deus contra os Pagãos”, desenvolve toda uma tese de que o Deus Cristão é Uno e Verdadeiro, enquanto que os deuses pagãos eram falsos e demônios.  Ele reinterpretou o pensamento platônico e agregou-o na doutrina cristã. A filosofia de Platão (428 a.C.- 347 a.C.) foi o sustentáculo e o alicerce para que o cristianismo tornar-se-ia forte e difundido por toda a Europa. Fica evidente, mais uma vez, que a figura masculina foi endeusada no Cristianismo. Com outro filósofo, durante o período medieval, São Tomás de Aquino (1225-1274) grande comentador das obras do filósofo grego Aristóteles (385 a. C.- 323 a.C.), Aquino fizera agregar o pensamento aristotélico na doutrina cristã, que fora aceito de tal  maneira pela igreja, que por séculos ninguém poder-se-ia pensar ao contrário sofrendo da pena de ser condenado à morte pela “Santa” Inquisição. Lembremo-nos do caso dos filósofos italianos Giordano Bruno (1548-1600) e Galileu Galilei (1564-1642) que foram condenados por pensarem ao contrário da igreja. O primeiro condenado à fogueira e o segundo condenado a isolar-se do mundo. O pensamento aristotélico afirmara que o homem é superior a mulher, pensamento este que a igreja cristã abraçou-o fortemente.

Voltando com a crítica merleau-pontiana, este a faz com severidade ao mecanicismo cartesiano que afirmava que os homens e os animais eram apenas máquinas, os últimos desprovidos de uma alma. É muito interessante recordarmos que os animais nas culturas antigas, anterior ao cristianismo, contemplavam-nos como deuses. Já no pensamento medieval acrescentou-se um abismo entre o homem e os animais. René Descartes (1596-1650) considerado o iniciante, por alguns, do Pensamento Moderno, contribuiu para com a filosofia, para com a matemática e para com o pensamento cientificista, este inerte na Idade Média. Embora cause estranheza que o filósofo afirma que o homem-máquina possui uma alma e o animal-máquina é desprovido de tal, essa afirmação foi uma revolução naquela época. Logicamente Descartes não poderia nunca afirmar que o homem seria desprovido de uma alma, daí o pensador estaria assinando sua sentença de morte perante a Igreja. Viu-se, certamente, diante das circunstâncias tenebrosas daquela época, preferiu indagar que o homem possui uma alma, senão teria o mesmo destino dos antecessores citados acima. Hoje percebemos que o mecanicismo cartesiano na questão corpo-máquina estava certo, pois nos séculos 20 e 21 a robótica mostrou-nos isso, que o corpo é uma máquina perfeita.

Na questão da criança e do louco, o filósofo afirma que o conhecimento deles  não continha uma profundidade. Colocavam-se questões para ambos do universo do homem sadio e perfeito, ora, o que não é relacionado com o estereótipo criado pela moral religiosa, colocavam-nos como indiferentes. No primitivo/selvagem, ao invés de tentarem entender a vida que praticavam, alcunhavam-lhes seres retrocessos que praticavam coisas mórbidas e obscuras. Não tentaram olhá-los como seres que não foram corrompidos pela moral hipócrita da qual o homem civilizado e perfeito faz parte. Lembremo-nos da máxima do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que afirmara: “O homem nasce bom, e a sociedade o corrompe”. Destaco também o filósofo francês Denis Diderot (1713-1784) na obra: A viagem de Bougainville, ou diálogo entre A e B. Nessa obra mostra-nos um religioso indo numa tribo e conversando com o chefe dela. O religioso acredita que todos aqueles costumes não passavam de uma série de coisas obscuras e anormais, mas no momento em que o primitivo começa questioná-lo, daí inverte-se a situação. O primitivo começa achar a vida do religioso uma série de absurdos sem fundamentos. Então o pensamento clássico desviou-se desse princípio da investigação para o entendimento do homem primitivo, colocando-o numa posição inferiorizada e maléfica.

No caso da mulher, explicitei acima, compara-se ao sexo mais frágil. Na “Santa”  Inquisição o número de mulheres mortas por serem condenadas como bruxas é algo anômalo. Criou-se o estereótipo da capacidade racional da mulher ser reduzida perante o homem perfeito.

Na questão das pessoas com deficiências anômalas eram consideradas monstros. Jamais a sociedade daquela época preocupou-se prestarem-lhes uma vida digna. O final de muitas dessas pessoas foi acabar em espetáculos circenses de quinta categoria. E o público que os assistira eram os mesmos denominados “homens perfeitos” que com suas “vestimentas” de morais e perfeitos, no íntimo sofrem de psicopatias mórbidas  satisfazem-se ao deparar-se com  o sofrimento alheio.

A crítica de Merleau-Ponty expõe que o pensamento contemporâneo começou importa-se com essas categorias, abraçou-os. Observamos que a mulher vem conseguindo igualar-se ao patamar do homem, conquistara muitas coisas. Os primitivos  mostram-nos a beleza do homem “nu e cru”, digamos assim, que não largou a sua animalidade, a beleza com que vivem sem as coisas impostas pela sociedade. O mundo da criança começou-se entender mais, a mais bela fase da vida, do conhecer, do mundo das fábulas, o mais puro pensamento. A ciência trabalhando para o progresso, pela saúde, as anomalias são e hão de serem evitadas. E a psicologia e psiquiatria separando os vários níveis dos transtornos mentais, ajudando essas pessoas e inserindo-as, muitas vezes, novamente no convívio social. No caso dos animais  criaram-se leis e direitos que os protegem, as pesquisas que abordam a inteligência animal mostram grandes avanços.

Há mais de 70 anos Merleu-Ponty fez essa conferência que parece tê-la feita ontem, pois é tão atual. Desde aquela época muita coisa mudou, muitas conquistas aconteceram, mas a pergunta que eu faço é: Esse pensamento clássico ainda persiste nos dias atuais?

Caro leitor, mais uma vez peço a licença e desculpe-me por respondê-la. Resposta: Sim!

Esse pensamento ainda é vivo nos dias atuais.

Vemos o feminicídio, o sexismo, o machismo, o especismo, o xenofobismo e etc em alta. O homem perfeito, sadio ainda está no topo da pirâmide. Peguemos exemplos de comentários dos jornalistas na TV ou em outros meios de comunicação e até comentários das pessoas. Quando um homem comete um ou vários atos errôneos, um crime hediondo é comum ouvirmos certas expressões:

- Isso não é um homem, é um animal ou um animal selvagem!

- Isso não é um homem, é um selvagem!

- Isso não é um homem, é um doente mental, ou um retardado, ou um louco!

- Esse homem é um covarde, é uma mulherzinha!

- Como esse homem fez isso, ele tem uma mentalidade de criança, ou ele é um moleque.

Percebemos nessas expressões que nunca o culpado é chamado de um homem. Criam-se nomenclaturas para mostrar-nos  que o homem que cometeu erros não é um homem e sim tem a deficiência de ser um animal, um primitivo, um louco, uma criança ou uma mulher, por isso cometeu o erro, ou seja, para que o homem perfeito, sadio e civilizado não saia do ápice da pirâmide, colocando culpabilidade nas outras classes . Muitas vezes observamos que esses   homens que cometem tais crimes, são fisicamente sadios, tem um núcleo de amizades, conviviam bem na  sociedade antes do crime. Logicamente detentores de uma psicopatia, mas diferente do louco que está retido no seu mundo, os psicopatas são inteligentes e conseguem ludibriar as vítimas. Vemo-los como homens sadios-perfeitos-civilizados antes do ato.

A pergunta final que faço e cabe cada um respondê-la  é a seguinte:

Será que um dia o homem-sadio-perfeito-civilizado sairá do topo da pirâmide?

Um dia irá igualar-se às outras classes ou ter-se-á uma classe que vai para o ápice da pirâmide?

 

 




Leituras/Créditos


HESÍODO. Teogonia, a origem dos deuses. Estudos e Tradução: Jaa Torrano. São Paulo, Ed. Iluminuras, 2012.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas-1948. Traducão: Fábio Landa e Eva Landa. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 2004.
COTTINGHAM, John. Dicionário Descartes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995.


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